Título: CRISE COM ISLÃ REVELA ESTILO DE PONTIFICADO DE BENTO XVI
Autor: Vera Gonçalves de Araujo
Fonte: O Globo, 17/09/2006, O Mundo, p. 49

Teólogo respeitado, Papa sabia que declaração seria polêmica

ROMA. O pontificado de Bento XVI, até a viagem apostólica à Alemanha, não apresentara cores berrantes: o tom era de um cinzento leve, quebrado pelos chapéus coloridos que o Papa parece adorar. Mas a violência do discurso na universidade de Ratisbona e a reação indignada do mundo islâmico tingiram o panorama com as tintas da polêmica religiosa.

Impossível pensar que um teólogo requintado e um diplomata de longa carreira como Joseph Ratzinger não tenha calculado o ninho de marimbondos que estava cutucando ao citar um imperador bizantino dos piores, Manuel II Paleólogo (mandou furar os olhos de um rival), para falar de paz e de Maomé.

Papa não esconde crença na superioridade do cristianismo

Os vaticanistas estão de acordo: a viagem à sua terra natal foi a ocasião para o Papa abrir o jogo, rompendo um dos tabus mais arraigados entre os líderes religiosos: podemos falar de tudo, de ética, família, paz, secularização, ateísmo, mas não da religião do outro. Os dogmas e os textos sagrados devem ficar acima de qualquer debate. Bento XVI se recusou a assinar esse pacto. Está convencido da superioridade do cristianismo sobre todas as outras fés, e não pretende ficar calado.

A segunda fratura é com o ecumenismo de João Paulo II, que já tinha sido congelado alguns dias antes da viagem alemã. As divergências entre os dois papas não são só questão de estilo de comunicação. Bento XVI deixou isso claro nas vésperas do Encontro Inter-Religioso de Assis. Uma das manifestações prediletas do antigo Papa, promovida pelos franciscanos, em que representantes de diversas religiões se reúnem na cidade de São Francisco para rezar pela paz.

Bento XVI manda apenas carta para encontro de Assis

Este ano, a única participação papal veio sob a forma de uma fria carta. Nela, Bento XVI esclarece aos organizadores que o espírito inter-religioso não pode se transformar em sincretismo religioso:

¿ É importante evitar confusões inoportunas. Mesmo reunidos para rezar pela paz, é preciso que a oração se realize seguindo os caminhos diferentes das várias religiões.

Com essas palavras, vai por água abaixo o projeto de uma ¿ONU das religiões¿ que João Paulo II tentou promover, justamente com o encontro de Assis.

Os comentaristas vêm notando um esforço grande do Papa para evitar uma linguagem intelectual. Falando de São Francisco, Bento XVI disse que o santo é ainda hoje um ótimo exemplo de ¿playboy arrependido¿. Mas frisou que essa conversa de ¿santo verde e ecologista¿ não tem cabimento:

¿ Foi a opção radical por Cristo que deu a ele a chave da compreensão da fraternidade a que todos os homens são chamados, de que também as criaturas não viventes ¿ como o ¿irmão sol e a irmã lua¿ ¿ de alguma forma participam.

De volta a Roma, Bento XVI vai começar uma das semanas mais difíceis para a diplomacia vaticana com uma equipe nova, com a substituição do último representante do antigo papado ¿ o cardeal Angelo Sodano, que deixou sua cadeira de secretário de Estado para dom Tarcisio Bertone.

A primeira tarefa do novo chefe de governo da Santa Sé ¿ chefe até certo ponto, visto que no Vaticano o poder do Papa é absoluto ¿ será contornar a crise com o mundo muçulmano, em vista da viagem papal à Turquia, prevista para 28 de novembro.

O novo secretário de Estado da Santa Sé tem fama de ser pouco diplomático e pouco político. Certamente vai ser obrigado a revelar suas qualidades de negociador. E terá a ajuda do novo ministro do Exterior do Vaticano, monsenhor Dominique Mamberti, nascido no Marrocos de pais franceses, com um excelente currículo de atividades em países divididos pela fé, como o Sudão.

Atmosfera muda na sala de imprensa do Vaticano

O ¿estilo Ratzinger¿ está evidente até num dos poucos lugares descontraídos do Vaticano: a sala de imprensa. Antigamente, o diretor da secretaria, o jornalista espanhol Joaquin Navarro-Valls, gostava de contar casos e anedotas aos colegas sobre seus jantares com João Paulo II, e muitas vezes as notícias nasciam desses papos informais.

O novo diretor é o sisudo padre Federico Lombardi, jesuíta, um intelectual que não dá nenhuma colher de chá aos leigos e que já esclareceu que o Papa não tem porta-voz.

O estilo de Bento XVI parecia ter como tom dominante a sobriedade (poucos documentos, poucas viagens, poucos discursos). A sensação, depois do discurso de Ratisbona, é que o Papa pretende transformar cada ato seu num símbolo de fé: nada do que fizer ou disser vai passar despercebido. Esqueçam as cores cinzentas.