Título: UM ABISMO DE DESCONFIANÇA MÚTUA
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Fonte: O Globo, 18/09/2006, O Mundo, p. 21
ISTAMBUL. Um dos mais básicos instintos humanos é o de se defender quando há ameaça. É um sentimento intrínseco que resulta em reações vigorosas, geralmente bem mais fortes do que aquelas notadas quando a calma prevalece.
A crise em torno das citações feitas pelo Papa Bento XVI sobre o Islã ganha eco em escala mundial, dizem os analistas. Bastam algumas palavras para transformar um comentário em insulto e invocar um conflito ¿Islã versus Ocidente¿, a alguns meses da visita do maior líder cristão à muçulmana Turquia. E ainda não sabemos se há como ele ¿ mesmo que peça desculpas ¿ ser salvo da execração.
A crise ¿ como as recentes controvérsias sobre as charges dinamarquesas sobre o profeta Maomé ¿ revela um abismo entre o ponto de vista de dois mundos, que apenas um diálogo sustentado poderia superar. ¿Os dois lados se sentem ameaçados¿, acredita Mustafá Akyol, um comentarista sobre assuntos islâmicos de Istambul: ¿Os muçulmanos vêem isso como parte de uma campanha que engloba Abu Ghraib e as guerras de Afeganistão e Iraque. Já o Ocidente pensa que está sob ataque de uma `jihad¿ e de uma religião intolerante¿.
O termo ¿jihad¿, que é mais amplo do que a interpretação de ¿guerra santa¿ dada pelo Ocidente, está no cerne da questão. O Pontífice disse em sua leitura semana passada que uma ¿guerra santa¿ era injustificável, implicando que o Islã era inerentemente violento.
Líderes do mundo muçulmano denunciaram o caso como um movimento para pintar todos os seus fiéis como terroristas. Enquanto o Ocidente entende estar ameaçado pelos mortais ataques de militantes islâmicos em Nova York, Londres, Madri, entre outras cidades, o Papa guarda uma razão particular para se sentir acuado. O Pontífice alemão vê o outrora cristão Ocidente ser minado por um relativismo que é ¿surdo a Deus e à moral¿.
A fé mais dinâmica na Europa atualmente é o Islã, tendência que o incomoda. O Vaticano freqüentemente pergunta por que Estados muçulmanos restringem os direitos de suas minorias cristãs, enquanto os muçulmanos no Ocidente podem construir mesquitas e pregar abertamente sua fé.
Este é um campo minado porque o cristianismo e o islamismo, as duas maiores religiões do mundo, acreditam profundamente que estão certos, estando o outro errado sobre Deus e o universo.
John Wilkins, ex-editor do ¿The Tablet¿, semanário católico de Londres, defende que um diálogo sensato é a única saída para ambos os lados conviverem sem abrir mão de suas crenças. O Papa, no entanto, teria confundido esse necessário pluralismo com o relativismo que ele combate e, por isso, faz declarações que soam provocativas, por não convidarem a um acordo. ¿Uma abordagem verdadeiramente pluralista não faria afirmações, mas perguntas. Ele poderia dizer: `Sim, nós fomos violentos no passado e nos arrependemos disso. Vocês podem fazer o mesmo?¿ Ou ele poderia perguntar se os muçulmanos vêem alguma coisa positiva no que a Igreja faz¿, sugere Wilkins.
Líderes cristãos na Turquia vêem mal-entendidos prevalecendo nos dois lados. Akyol alega, porém, que apenas minorias em cada lado de fato procuram o embate e que o diálogo exige calma. ¿A não ser que nos acalmemos, isto só vai piorar¿, adverte.
TOM HENEGHAN é editor de Religião da agência de notícias Reuters