Título: Trabalho escravo sem punição
Autor: Martha Beck
Fonte: O Globo, 21/09/2006, Economia, p. 29
OIT cita avanços, mas diz que há 25 mil nessa situação no país e ninguém cumpre pena de prisão
Embora tenha feito avanços no combate ao trabalho escravo, o Brasil ainda encontra dificuldade em punir os responsáveis por esse tipo de crime. Até hoje, por exemplo, ninguém cumpriu pena de prisão por essa prática no país - que mantém pelo menos 25 mil brasileiros em atividade degradante. A avaliação está no estudo "Trabalho escravo no Brasil do século XXI", encomendado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e realizado pela ONG Repórter Brasil. Segundo o documento, um dos principais problemas hoje é a falta de entendimento sobre quem deve julgar na esfera penal os processos sobre trabalho escravo, a Justiça Federal ou a Estadual.
"A indefinição é antiga e tem sido um dos principais fatores que dificultam o combate à impunidade, a ponto de haver juristas que pedem uma definição urgente, para qualquer um dos lados. Se todos reivindicam a competência para o crime, na prática, ninguém a tem", diz o texto.
Segundo o levantamento, de 1995 a 2005, 1.463 propriedades foram fiscalizadas e 17.983 pessoas foram libertadas do trabalho escravo no Brasil. Mas, apesar de o Código Penal prever punição de dois a oito anos para quem pratica esse crime, ninguém foi parar atrás das grades. Um fazendeiro reincidente, por exemplo, teve a pena revertida em doação de cestas básicas.
- É incrível que não tenhamos ninguém na cadeia por esse crime, que fere os direitos humanos - disse a diretora da OIT no Brasil, Laís Abramo, lembrando que o número de pessoas submetidas ao trabalho escravo no país pode chegar a 40 mil, pois o mapeamento é difícil.
O estudo destaca ainda que o Congresso ainda não aprovou proposta de emenda constitucional (PEC) que prevê expropriar terras onde há trabalho escravo. O projeto tramita há 11 anos e funcionaria, dizem especialistas, como forte desestímulo a essa prática.
Indenizações sobem para R$7,4 milhões
O documento avalia também o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, lançado pelo governo em 2003. Segundo a OIT, quase 70% das 76 metas previstas foram cumpridas ou parcialmente cumpridas até agora. Entre elas está inserir cláusulas nos contratos de crédito rural que impedem a obtenção de recursos quando comprovada a existência de trabalho degradante numa propriedade.
Segundo a OIT, muitos empresários que praticam o crime ainda conseguem obter esses financiamentos. Mas isso é cada vez mais difícil devido à "lista suja" do Ministério do Trabalho, que traz as propriedades rurais autuadas por escravidão. A lista é divulgada semestralmente e tem hoje 159 nomes. Há ainda um pacto nacional pelo qual grandes empresas nacionais e multinacionais se comprometeram a não adquirir produtos dos incluídos nessa lista.
O levantamento assinala como avanços no país as operações do grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e as ações civis do Ministério Público contra empresários envolvidos nesses esquemas. Enquanto até 1999 não havia qualquer indenização paga ao trabalhador escravo, em 2005 o valor foi de R$7,4 milhões.
- O trabalho escravo não é mais um bom negócio. As ações civis públicas têm conseguido fazer com que as fazendas sejam condenadas e paguem indenizações - disse Laís Abramo.
Projetos de emprego e renda são limitados
Segundo a OIT, ainda é necessário fazer mais. Entre as ações que precisam ser adotadas estão projetos nacionais de geração de emprego e renda nas áreas fornecedoras de mão-de-obra escrava, como Maranhão e Piauí.
- Há apenas projetos locais e regionais, com alcance limitado - afirmou Laís.
Outro problema apontado é a falta de pessoal e recursos para operações de fiscalização no país. Segundo o estudo, embora o combate ao trabalho escravo venha recebendo cada vez mais recursos da União - R$1,3 milhão em 2003, R$2,9 milhões em 2004 e R$3,4 milhões no ano passado - esse volume é insuficiente e deve ser elevado.
Outras recomendações são realizar operações de fiscalização prévia (sem que haja denúncias) em fazendas e implantar um plano de prevenção contra trabalho escravo no país. Segundo o chefe do Programa de Combate ao Trabalho Escravo da OIT, Roger Plant, esse crime afeta mais de 12 milhões de trabalhadores no mundo, sendo 1,3 milhão na América Latina e Caribe. Mas ele acredita que os esforços dos países para atacar essa prática podem fazer com que o trabalho escravo seja eliminado até 2015:
- É uma meta ambiciosa, mas possível - afirmou Plant.
O documento da OIT destaca que, mesmo ainda precisando de recursos e pessoal, o Brasil evoluiu na fiscalização de propriedades. Enquanto em 1995 foram libertadas só 84 pessoas, em 2005 foram mais de 4 mil. Entre 2004 e o ano passado, o número de trabalhadores libertados pelas equipes do governo subiu 42%. Já o número de autos de infração lavrados subiu de 906 para 2.224 na última década.
Para o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), José Nilton Pandelot, apesar das estratégias do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, os esforços ainda são insuficientes:
- Os números do trabalho forçado continuam muito altos. A fiscalização está mais especializada e quando o Estado se faz presente, o trabalho escravo aparece. O problema tem a mesma raiz de outros no Brasil: a falta de oportunidade e a desigualdade, que evidenciam ausência de política pública genérica que aumente a renda e o emprego.
MAIORIA É ANALFABETA OU TEM ATÉ 2 ANOS DE ESTUDO, na página 30
"É incrível que não tenhamos ninguém na cadeia por esse crime, que fere os direitos humanos"
LAÍS ABRAMO
Diretora da OIT no Brasil
"O problema tem a mesma raiz de outros no Brasil: a falta de oportunidade e a desigualdade"
JOSÉ NILTON PANDELOT
Presidente da Anamatra
Inclui quadro: saiba mais sobre o levantamento