Título: MAIS TORTURA DO QUE NA ERA SADDAM
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Fonte: O Globo, 22/09/2006, O Mundo, p. 36

Investigador da ONU diz que prática se tornou desenfreada nas prisões do Iraque

As marcas nos corpos que lotam os necrotérios de Bagdá revelam uma realidade ainda mais violenta do que a apresentada pelas estatísticas de mortes no país: a prática da tortura é desenfreada nas prisões, em centros de detenção da polícia e nas ações dos esquadrões da morte, podendo ser ainda pior do que no regime de Saddam Hussein, advertiu ontem um importante investigador da ONU.

- A situação em relação à tortura está completamente fora de controle - alertou Manfred Nowak, relator especial das Nações Unidas sobre Tortura e Crueldade, em Genebra. - A situação é tão ruim que muitas pessoas dizem que está pior do que na época de Saddam.

Corpos sem olhos ou dentes

Nowak, que está em Genebra para apresentar suas conclusões ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, contou que abusos são cometidos por forças de segurança, milícias e rebeldes. Os corpos no necrotério "freqüentemente trazem marcas de tortura intensa", informa o relatório da Missão da ONU de Assistência no Iraque. O investigador não visitou o país, mas disse que baseava suas declarações em dados de autópsias e entrevistas com iraquianos que fugiram do Iraque.

O relatório descreve métodos brutais. "Corpos de presos têm sinais de golpes com o uso de fios elétricos, feridas em diferentes partes do corpo, incluindo cabeça e órgãos genitais, ossos de pernas e mãos quebrados, queimaduras elétricas e com cigarros", descreve o documento. Em seus trechos mais fortes, o informe descreve que corpos no necrotério de Bagdá apresentam queimaduras produzidas por ácido e outras substâncias químicas. Em muitos há falta de pele. Outros tiveram olhos ou dentes arrancados.

As vítimas vêm de prisões controladas pelos ministérios do Interior e da Defesa e por milícias privadas - que, segundo Nowak, utilizam os métodos de tortura mais brutais. O investigador disse que também foi detectado tratamento desumano em centros de detenção comandados pelos EUA e por forças estrangeiras, mas que as condições parecem ter melhorado desde o escândalo sobre o abuso de prisioneiros de Abu Ghraib. O relatório afirma ainda que os corpos das vítimas da violência entre xiitas e sunitas freqüentemente apresentam marcas demonstrando que foram brutalmente torturadas antes de serem executadas.

Os casos de tortura são confirmados por relatos de sobreviventes. Um homem disse ter apanhado de grupos extremistas sunitas com fios elétricos e barras de ferro para revelar a que ramo muçulmano pertencia. "O corpo de outro homem seqüestrado por milícias xiitas tinha sinais de mutilação", diz o relatório.

- A situação é extremamente séria, mas não se trata apenas de tortura do governo - disse Nowak.

A Missão da ONU de Assistência no Iraque pediu ao governo que convide Nowak a visitar o país e verificar a situação nos centros de detenção. Mesmo assim seria uma avaliação limitada, porque não seria seguro deixar a zona fortificada de Bagdá.

Itália entrega província

O relatório foi divulgado no mesmo dia em que mais 38 corpos foram encontrados nas ruas da capital, algo que praticamente se tornou uma rotina na cidade nas últimas semanas. Um dia antes, outro informe da ONU registrou que 6.599 iraquianos morreram de causas violentas nos últimos dois meses: 700 a mais do que no balanço do bimestre anterior. Comandantes americanos prevêem que a violência aumentará nas próximas semanas, com o início do mês sagrado do Ramadã.

Apesar da violência, cada vez mais tropas estrangeiras deixam o país. Ontem, as tropas italianas entregaram a província de Dhi Qar às forças iraquianas. Em oito semanas, os 1.600 soldados italianos terão deixado o país. Esse era o último grande aliado da coalizão vindo da Europa Ocidental.