Título: O REI DOS PIRATAS
Autor: MARCOS OLIVEIRA
Fonte: O Globo, 29/09/2006, Opinião, p. 7

Embora a pirataria possa ter diversas interpretações de acordo com a época histórica onde ocorra - já foi até prática auxiliar de reis e rainhas poderosos -, a figura do pirata sempre teve uma conotação negativa no imaginário popular. Pirata é aquele ser selvagem, violento, capaz das maiores brutalidades, sem respeito a leis, costumes e, muito especialmente, propriedade alheia. A associação de qualquer pessoa a um ato de pirataria provoca sempre um sentimento de repúdio, e foi pensando nisto que Edmund Pratt Jr., executivo da Pfizer de 1972 a 1992, teve uma idéia que se provou muito eficaz.

Ao longo da década de 70, a indústria farmacêutica americana passava por uma série de dificuldades. Em primeiro lugar, a imagem do setor perante o público estava em baixa depois dos resultados da comissão de investigação do Senado - a famosa comissão Kefauver -, que colocou a nu as práticas monopolistas daquela indústria, em função das quais os preços dos medicamentos iam para a estratosfera. Em segundo lugar, a indústria começava a se ressentir da concorrência cada vez mais efetiva de outros países. Além de perder mercados externos, estava ficando difícil justificar os altos preços dos medicamentos nos Estados Unidos quando canadenses, japoneses e coreanos, entre outros, conseguiam fazer os mesmos produtos a preços bem mais baixos.

Pratt percebeu que a forma mais eficiente de barrar a competição de outros países seria fazer com que eles adotassem as mesmas práticas de propriedade industrial que os EUA usavam - ou seja, estender o monopólio gerado pelas patentes americanas a todos os países do mundo - e que a melhor maneira de fazer isto seria vincular a questão da propriedade industrial ao comércio internacional, onde os EUA eram líderes incontestes e o mercado mais cobiçado. Mas isso teria que ser uma política de governo. Como convencer o governo a apoiar um pedido de um setor industrial tão malvisto pela opinião pública?

Aí é que entrou a genialidade de Pratt. Ele conseguiu ligar seus concorrentes estrangeiros à imagem do pirata. O que os fabricantes estrangeiros faziam ao não respeitar as patentes americanas era pirataria, roubo da inventividade do povo dos Estados Unidos. Não era, é claro, mas a idéia era forte, e a opinião pública comprou barato. Os países asiáticos foram os mais visados: eram os tigres, os dragões, predadores, que estavam malvadamente expropriando os americanos de seu maior capital, o capital intelectual. E não foram apenas os asiáticos: Brasil, México, Canadá e outros não ficaram imunes à maledicência.

Bem, essa é uma história de sucesso. A estratégia deu certo, e o governo americano, motivado pelo trabalho do Comitê Assessor de Negociações de Comércio - órgão de assessoramento ao governo onde executivos do setor privado tinham assento -, aplicou-se na tarefa de arrebanhar aliados entre os outros países usando a velha tática da cenoura e do porrete. A cenoura era o Sistema Geral de Preferências, sistema pelo qual o governo americano isentava do imposto de importação os produtos dos países em desenvolvimento que se alinhassem com as políticas do país. O porrete era uma legislação punitiva, que ficou conhecida como "Super 301", e que dá poderes ao presidente dos EUA de estabelecer sanções comerciais contra países que usem táticas comerciais vistas pelos EUA como desleais. O Gatt, órgão que antecedeu a Organização Mundial de Comércio (OMC), estava naquela época montando uma nova rodada de negociações de liberalização comercial, e os industriais americanos, já então com o apoio de colegas europeus e até de antigos piratas japoneses, conseguiram que os respectivos governos inserissem a questão da propriedade intelectual nos itens de discussão. O resultado foi o Trips, o acordo mais importante sobre propriedade intelectual de toda a História e pelo qual todos os países filiados - entre eles Burundi, Paraguai, Serra Leoa e um enorme rol de subdesenvolvidos - teriam que adotar um padrão mínimo de Primeiro Mundo na proteção à propriedade intelectual.

Desde então, a estratégia de usar o termo pirataria para denegrir qualquer prática que afeta os interesses comerciais das grandes potências econômicas vem sendo usada sistematicamente. Agora mesmo, nota-se a tendência - ainda tímida, é verdade - de associar o uso de licenças compulsórias, como as que o governo brasileiro vem cogitando adotar, para poder continuar a distribuir gratuitamente medicamentos à população carente, a um ato de pirataria. Ocorre que, se licença compulsória for pirataria, o rei dos piratas será o presidente dos Estados Unidos, porque nenhum outro governo faz uso tão extensivo deste mecanismo de proteção contra abuso dos direitos de patente. E de forma absolutamente legal, diga-se de passagem.

A legislação americana, o US Code, tem pelo menos quatro seções que tratam de licenças compulsórias, a mais usada sendo a 28 USC 1498, que dá ao governo a liberdade de lançar mão de qualquer patente concedida em seu território. E contra esse tipo de decisão de governo, que pode ser tomada por qualquer funcionário, não cabe recurso judicial, senão para discutir o valor da indenização a ser paga. Eis aí uma lição que deveríamos aprender com nossos amigos do Norte: como usar extensivamente as patentes concedidas no território brasileiro para beneficiar a população, sem correr o risco das ridículas, mas eventualmente eficazes, acusações de pirataria.

MARCOS OLIVEIRA é vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria de Química Fina (Abifina).

A acusação de pirataria se tornou tática habitual dos EUA para enfrentar seus concorrentes