Título: A ÚLTIMA SEMANA DOS CANDIDATOS
Autor: José Casado e Roberto Stuckert Filho
Fonte: O Globo, 01/10/2006, O País, p. 16

Favorito e popular, mas hoje solitário e sem pronunciar PT

Presidente-candidato se ressente da falta de amigos aliados de antigas campanhas, reclama das dores, dos tucanos e das elites e não esconde o nervosismo no final

Ohomem mais poderoso da República terminou a semana decisiva para a reeleição com queixas constantes de dor. Um dia, as dores de Lula eram na perna esquerda ¿ ¿um estiramento muscular¿, reclamou. Depois, no braço esquerdo ¿- ¿bursite¿, explicou. Por fim, nos quadris ¿ ¿nervo ciático¿, diagnosticou.

No último ato público da campanha eleitoral, mostrava-se abatido. No rosto contraído sobressaíam olheiras profundas, acentuadas pela barba grisalha e realçadas pelo capuz do casaco azul que o protegia do frio e da fina garoa paulista ¿ ¿Petrobras¿, dizia a estampa na manga. Em pé, durante três horas e meia, o presidente-candidato esforçou-se em sorrisos, enquanto cumprimentava metalúrgicos na porta da fábrica da Mercedes Benz e da Ford, na sexta-feira, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista.

Há 17 anos, Luiz Inácio Lula da Silva sustenta uma luta cotidiana pelo poder. Brasileiros das últimas duas gerações não assistiram a uma única eleição presidencial sem Lula candidato. ¿Sou o único político de expressão nacional¿, costuma repetir. É, certamente, o mais popular hoje. E é, também, um dos mais solitários nestes dias.

Em quase todos os comícios da reta final da campanha, o carismático candidato seguiu um ritual de descer do carro, cumprimentar poucos aliados e, rapidamente, se refugiar em pequenas salas improvisadas de três metros quadrados erguidas ao lado dos palcos. Ficava ali, sozinho, cerca de quinze minutos, fumando cigarrilhas. Às vezes, apelava para a companhia de um ajudante-de-ordens ou de um guarda-costas.

O PT sumiu da retórica de Lula

O presidente-candidato dá mostras de ressentir a falta dos rostos que pontuavam na intimidade de suas campanhas eleitorais desde 1989. Sumiram todos no calendário das crises recentes.

Alguns por vontade própria, como os ex-assessores Frei Betto e Ricardo Kotscho ¿ ¿um exemplo de inteligência¿, homenageou no palanque do último comício, para uma multidão dispersa na escuridão da Área Verde de São Bernardo, na noite de quinta-feira (não se sabe por que faltou luz na praça, mas a energia voltou às 22h40m, quando Lula foi embora.)

Outros, como os ex-ministros José Dirceu e Antonio Palocci, desapareceram porque se transformaram em emblemas de escândalos que o presidente desejaria esquecer. Foram quase seis dezenas de ministros, assessores, aliados e amigos removidos na série de escândalos dos últimos 15 meses. No último, há duas semanas, viu afundar seu secretário particular de duas décadas, Freud Godoy, e um dos mais antigos parceiros de sindicalismo, Osvaldo Bargas.

O partido, igualmente, desapareceu na retórica de Lula. Ele percorreu cerca de seis mil quilômetros e participou de uma dezena de atos públicos em cidades do Sul e do Sudeste na última semana da campanha eleitoral. Não pronunciou o nome do Partido dos Trabalhadores, que criou há 26 anos. Esteve sempre cercado por bandeiras e militantes paramentados. Referiu-se à ¿nossa organização política¿, pediu votos para ¿nossos candidatos¿, mas sequer mencionou a sigla ¿PT¿.

Nos palcos de São Paulo ao Rio Grande do Sul, na semana passada, atuou como se estivesse numa disputa isolada, solitária. Nas praças de Araraquara (SP) a Porto Alegre, embalado pela música-tema de sua propaganda (¿Lula de novo, com a força do povo¿), o locutor anunciava ¿o presidente Luiz Inácio do Povo Lula da Silva¿. O candidato repetia:

¿ O meu orgulho é ser um Silva, um de vocês. Eles dizem: ¿Esse Lula não mantém a liturgia do cargo¿. Ora, sou chamado de Lula, sim. Sou chamado assim desde que nasci e gosto disso. E quando morrer vai estar escrito na pedra: ¿Aqui jaz Lula¿. E pronto! Eles têm é raiva, ódio mesmo, quando vêem que há uma pessoa, um torneiro mecânico, que entende mais de povo do que eles.

¿Eles¿, indica a seguir, são os do PSDB, conhecidos como tucanos:

¿ O ódio deles nem é contra mim, até porque me respeitam muito. O ódio deles é contra o povo. É contra vocês, porque sou um de vocês. Não tenho dúvida: na história do Brasil não houve um presidente da República que tenha sido tão massacrado como sou. E agora tentam melar...

Dificuldade para assumir erros

Fazia uma pausa, a massa respondia com gritos, agitando bandeiras. Ele retomava:

¿ Olha, eu conheci os tucanos. Temos alguns lá (na Granja) no Torto, em Brasília. Mas só compreendi há pouco tempo. Eles têm o bico bonito, mas são predadores, comem os ovos e até os pequenos passarinhos que estão no ninho. Eles pregam o ódio e consideram o povo cidadãos de segunda classe. Mas, desta vez, nós vamos quebrar o bico deles.

A platéia ia ao delírio. Assim, Lula cavava a chance de falar, de passagem, dos ¿erros¿. E demonstrava sua dificuldade em lidar com os próprios ou os dos amigos, contagiando outros como Aloizio Mercadante, candidato ao governo de São Paulo, com a auto-indulgência:

¿ Erro em política não é o que a gente faz, mas o que os adversários dizem que a gente fez.

Lula reforçava:

¿ Alguns companheiros erraram, erraram feio e vão ter de pagar pelos seus erros. Mas todo mundo erra. Na mesa de doze, havia um errado. Na Inconfidência, houve um que traiu. Agora, a diferença é que quando eles erram, o erro deles só fica uns dias no jornal e depois some. Com a gente, não. Cada erro cai em cima da gente como uma bomba atômica. Todo dia.

O presidente pretende escrever um livro-desabafo sobre sua relação com a imprensa. Anunciou em São Bernardo:

¿ Vocês não sabem o que é governar um país com uma elite preconceituosa como a nossa. Preconceituosa! Vou publicar um livro para contar como é isso, para falar também dos articulistas (de jornais). Outro dia, um escreveu que precisamos mudar de povo!

A platéia riu. À distância do palco, do outro lado da praça de luzes apagadas, na porta de uma padaria, o ex-metalúrgico Zé dos Santos, de 64 anos, não estava nem aí. Copo de cerveja na mão, apenas festejava, com uma dose de ironia:

¿ É Lula lá/ É nóis aqui/ É álcool-ni-mim...

O público variava. O tom de desabafo era contagiante, como demonstrou com exagero a ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy, em Sorocaba (SP):

¿ Abri os jornais hoje e só vi comentários sobre o vídeo da Cicarelli. Não tinha nem uma linha sobre a pesquisa do IBGE que mostrou uma redução de 19%, repito 19%, da pobreza no Brasil nos últimos três anos...

O palanque fora montado em uma praça, de frente para a igreja matriz. Lá dentro, três dezenas de mulheres, integrantes do Coral da Terceira Idade da Universidade de Sorocaba, tentavam competir, em voz alta, sob a batuta do maestro Cadmo:

¿ Te amarei, Senhor/ Te amarei, Senhor...

E a ex-prefeita gritava:

¿ Gente, a imprensa só fala do vídeo da Cicarelli. Isso é um escândalo!

Comício é um estuário, geralmente de lama, sobre os adversários. Lula aprendeu isso na carne, literalmente. No início dos anos 60, sua família votava em Adhemar de Barros, então governador de São Paulo. Mas ele gostava de assistir a comícios do adversário, Jânio Quadros. Certo dia foi ver Jânio, e entrou num bonde com ¿santinhos¿ de Adhemar nas mãos. Foi expulso a socos e pontapés.

Na reta final da campanha, os comícios de Lula tinham algo de diferente. Era favorito nas pesquisas, porém estava desconfortável, exalando ressentimento, incomodado tanto com as dores físicas quanto com aliados. Era notável a insegurança do veterano de disputas presidenciais sobre o rumo do eleitorado neste domingo.

Não era o único com nervos à flor da pele.

¿ Chega logo dia primeiro, chega logo dia primeiro ¿ repetia, como em oração, o chefe de gabinete da Presidência da República, Gilberto Carvalho.

Bronca pública em Suplicy

Aloizio Mercadante, candidato do PT ao governo paulista, exibia desolação. Na chegada a Sorocaba (SP), um amigo foi cumprimentá-lo:

¿ E aí, tudo bem?

¿ Já estive em outras melhores ¿ lamentou-se.

¿ Vai em frente, vale a experiência.

Leveza e suavidade só com Eduardo Suplicy, candidato à reeleição ao Senado por São Paulo. Num palco, contou a história do seu casamento e da separação de Marta Suplicy, para espanto dela, de Lula e da audiência. Em outro, cantou um trecho em inglês de Blowin' in the Wind, de Bob Dylan.

Foi o único a receber uma crítica pública de Lula:

¿ Às vezes, o Suplicy é muito mole com nossos adversários lá no Senado. Mas isso é da índole dele, é um democrata.

Lula gosta de elogiar os seus. É como se estivesse elogiando a si mesmo, pela capacidade de escolha. Mas em Porto Alegre foi além, ao falar da ministra Dilma Roussef, chefe da Casa Civil, que sucedeu a José Dirceu. Citou-a mais vezes do que os candidatos ao governo gaúcho, Olívio Dutra, e ao Senado, Miguel Rosseto.

Muitos percebem Dilma, mineira de nascimento e gaúcha por adoção, como um ¿quadro técnico¿ de Lula, talvez por sua formação de economista. Mas, na vida real, essa ex-guerrilheira é hoje a principal assessora política do presidente. E, na definição do vice-presidente José Alencar, é a pessoa no Palácio do Planalto que detém ¿ e continuará a deter ¿ a maior fatia de poder dentro do governo, depois de Lula.

¿ Vou pedir à Dilma, que é quem tem poder aqui, para ver se transfere meu título (de eleitor) para o Rio Grande do Sul ¿ ironizou Alencar, na praça central de Porto Alegre, antigo ponto de encontro do poeta Mário Quintana e seus modernistas gaúchos dos anos 20.

Ali, voltando-se a Dilma, Lula fez a única menção sobre como pensa em fazer política num eventual segundo mandato:

¿ Só não vamos fazer uma (política) de olho por olho, porque senão vai todo mundo ficar cego. Vou é continuar governando com vocês e para vocês, de costas para essa elite.

Passou a mão fechada com o microfone no alto do outro braço, como se esfregasse um ponto dolorido. Bursite? Talvez.

¿ Mas também pode ser ¿petite¿ ¿- ironizou um integrante da equipe do Serviço Médico de Urgência gaúcho, que cercava o palanque com três ambulâncias.

COLABOROU: Ricardo Galhardo