Título: A desilusão eleitoral que tomou conta do Rio
Autor: JOSÉ MEIRELLES PASSOS
Fonte: O Globo, 01/10/2006, O País, p. 28
Maioria da população passa ao largo da campanha e escolhe seus candidatos por exclusão. Desencanto é maior na capital do estado
Há quem diga que se trata de apatia. Mas, na verdade, desilusão é a palavra mais adequada para definir como os fluminenses encaram a escolha de seu novo governador. Eles estão desiludidos com os políticos locais. A maioria diz não ter em quem votar. Só que, ao mesmo tempo, a maior parte dessa maioria tem afirmado aos pesquisadores de opinião que votará em Sergio Cabral.
Muitos insistem que farão isso por falta de opção. O que, sem dúvida, é uma contradição em termos.
Opções abaixo das expectativas
Afinal, alternativas há. Ainda que, segundo os eleitores, elas estejam abaixo de suas expectativas. De seus sonhos. Por isso faltou ânimo, faltou entusiasmo ao longo da campanha:
¿- O jeito é votar no menos ruim, porque não há melhor ¿ diz Josenildo Queiroz, eletricista em São João do Meriti.
Na hora de votar, as percepções costumam falar mais alto do que as promessas dos candidatos. Em especial se uma campanha eleitoral é marcada, como a atual, por um desinteresse contagiante, enraizado na certeza coletiva de que a classe política cada dia se assemelha mais a quadrilhas com interesses escusos, e muito próprios.
A variedade à disposição de cariocas e fluminenses não entusiasmou. Marcelo Crivella, bispo cantor da Igreja Universal e senador da República, demonstrou conhecer melhor a África, onde viveu sete anos como pastor, do que as agruras dos favelados e daqueles que dão duro na zona rural.
¿- Parece ser um homem educado, fala manso, mas não serve: teríamos um governador dividido entre a fé e a política, e isso não seria bom ¿ diz Marta Carvalho, professora de educação física, residente em Bangu.
Denise Frossard, a deputada que se tornou célebre como juíza durona, caçadora de bicheiros, prometeu acabar com o crime organizado. Mas não demonstrou intimidade alguma com as comunidades carentes e com os temas extrajudiciais que afligem a população.
¿ Ela devia se candidatar a xerife ¿ ironiza o policial militar Ferreira, do Engenho de Dentro.
Vladimir, o bonachão
Apesar de esforçado, o deputado Eduardo Paes demonstrou ainda não estar pronto para vôos de maior envergadura. Sua candidatura serviu, na prática, como trampolim à disputa da prefeitura do Rio de Janeiro em 2008. Por sua vez, Vladimir Palmeira não passou de um candidato bonachão que instigou debates como um animador de auditórios, mas para os quais se mostrou despreparado. Milton Temer e Carlos Lupi se destacaram por sua ausência marcante inclusive nas pesquisas sobre intenção de voto.
Em meio ao dilema de ser ou não ser o herdeiro da ¿dinastia Garotinho¿ ¿ cujo apadrinhamento rendia frutos no interior mas rejeição na capital ¿ o senador Sérgio Cabral mostrou ter feito o dever de casa: acabou sobressaindo (na guerra de percepções) como conhecedor da causa, à vontade na discussão dos temas essenciais, o que explica o seu favoritismo.
¿Farinha do mesmo saco¿
Duas expressões brotaram com frequência nos bate-papos em que eleitores procuravam descrever o cenário. Eles definiam a lista de candidatos como ¿um balaio de gatos¿, ou diziam não haver distinção entre os que pleiteiam dirigir o estado, pois eles seriam ¿farinha do mesmo saco¿.
Um exagero, talvez. Seja como for, ficou claro que depois de oito anos de equívocos e mazelas na administração estadual, o cansaço, a fadiga política, tornaram-se palpável ¿ em especial na cidade do Rio de Janeiro. E não é para menos. O cotidiano da capital vem se tornando cada dia mais incompatível com a sua beleza, com o seu jeito descontraído de ser.
Virou rotina tomar cuidado ao sair de casa, escolher bem o caminho, planejar idas e vindas em determinados horários ¿ e em quase todas as regiões. Além de viver sob trancas e grades. Isso se tornou um costume obrigatório, forçado. E de importância literalmente vital.
¿- Já fui assaltado duas vezes. Numa delas, quando saía do supermercado, dois moleques levaram as minhas compras, o pouco dinheiro que tinha sobrado e até o meu pente. Na outra botaram uma arma na minha cabeça, na porta do banco, e embolsaram parte da minha pensão ¿ contou o aposentado Lourenço de Almeida, morador de Copacabana.
Dilema: calar ou denunciar?
Têm sido registradas em média cerca de 300 mil ocorrências policiais de violência por ano em todo o estado. Nos últimos oito anos houve pouco mais de 44 mil homicídios ¿ cifra digna de guerras e tsunamis. Desprotegidas, as vítimas se vêem habitualmente diante de um dilema: denunciar ou calar? Algumas hesitam porque temem tanto os policiais quanto os bandidos. Outras porque acham que isso é uma simples perda de tempo.
¿ Há muita corrupção. Botam uma grana na mão do policial e ele olha para outro lado. Às vezes prendem ladrões e assassinos, mas eles não chegam a esquentar a cama no presídio. Pegam penas leves ou o juiz manda soltar antes da hora ¿ diz Alice Menezes, costureira em Nova Iguaçu.
A violência tornou-se um cartão-postal do Rio. E quem se dá ao trabalho de olhar no seu verso vê os frágeis pilares que sustentam a paisagem: eles contêm a penúria carioca motivada pelo desemprego que, de tão persistente, faz com que 10% dos desempregados já nem sequer procurem mais uma colocação.
Acrescente-se a isso os 20% da força de trabalho que sobrevivem graças a subempregos (sem carteira assinada) que lhes rende, no máximo, um salário mínimo. Levando-se em conta, ainda, que 30% das famílias deste estado vivem de aposentadorias, o perfil torna-se desanimador e o desafio maior para quem vencer as eleições.
Não fossem o petróleo e o turismo ¿ este último, setor que tem sofrido duros golpes justamente devido aos problemas crônicos de segurança ¿ o Rio estaria numa situação ainda mais precária. Mais indústrias se instalariam no estado não fosse a carência de mão-de-obra especializada, porque faltam escolas técnicas.
Três milhões na informalidade
Não é à toa que três milhões de pessoas estão ganhando a vida na economia informal na região. E que a renda per capita tenha tido uma queda de 10% nos últimos oito anos. A redução da violência e o aumento do emprego são as reivindicações prioritárias de cariocas e fluminenses. Mas há também a questão das contas do governo. Ou, mais especificamente, dos seus gastos.
Enquanto desembolsa R$6 bilhões anuais com custeio, e R$13 bilhões com a folha de pagamento de funcionários, o estado investe apenas R$2,3 bilhões no bem-estar da população. As conseqüências disso são visíveis. A população, que tropeça nelas diariamente, tem a chance hoje de alterar o panorama. Resta saber se haverá de fato uma correção do rumo ou um mero prolongamento da angústia.
JOSÉ MEIRELLES PASSOS é correspondente do GLOBO em Washington há 20 anos