Título: O FIO DA HISTÓRIA
Autor: LUIZ PAULO HORTA
Fonte: O Globo, 30/09/2006, Opinião, p. 7

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso está tão zangado com o seu sucessor que o chamou de diabo (depois que Lula se comparou a Jesus Cristo).

Exageros à parte, a zanga procede. De uns tempos para cá, o presidente Lula desfiou a ladainha da "terra arrasada" que ele teria recebido, e que endireitou como que num golpe de mágica.

É uma ingratidão, que deve ter doído tanto mais quanto Lula e Fernando Henrique, vinte anos atrás, combatiam ombro a ombro, surgidos do mesmo bojo de uma esquerda que se queria moderna.

Além de ser uma ingratidão, é uma inverdade, para dizer o mínimo. Qualquer aprendiz de análise política sabe que o mandato que agora se encerra manteve algumas linhas mestras do período anterior, sobretudo no que se refere à ortodoxia monetária. Se manteve, como falar em "terra arrasada"? Como descrever o atual mandato como o começo de tudo? E por que romper a tal ponto com a idéia de uma continuidade?

Possivelmente porque, de uns tempos para cá, o governo enredou-se demais em escândalos que não conseguiu explicar. Nesse caso, jogar pedras no passado seria um modo de mudar de assunto.

Mas, ao se apresentar como o raiar absoluto de uma nova era, o presidente Lula faz um mal enorme a si mesmo e ao país. A si mesmo, porque ele pode vir a acreditar no que está dizendo; e eis as portas abertas para a mais perniciosa megalomania. Ao país, porque a idéia da continuidade é essencial a uma construção democrática. A política não anda aos saltos, nem a economia.

Agora, por exemplo, comemoramos a diminuição do número de miseráveis no território nacional; um índice bem expressivo. Mas fenômeno muito parecido ocorreu no começo do Plano Real, mesmo se depois perdeu força.

Se, agora, encolhe de novo a miséria, isso tem muito a ver com o que foi semeado nos mandatos anteriores - sobretudo com o fato de que, na era FHC, o país subjugou uma inflação que, ao longo de décadas, corroia o dinheiro dos mais pobres.

Quando o presidente Lula se apresenta como o começo absoluto de uma nova linhagem, ou da própria História do Brasil, ele está prestando homenagem ao velho mito de esquerda que é a idéia da Revolução. Revolucionar certas coisas é necessário; dar continuidade a outras, também. De mudança e continuidade é feita a História. Quando isso não acontece, as decepções são enormes.

No terreno crítico da educação, por exemplo, o atual presidente encontrou um processo em andamento, que resultou praticamente na universalização do ensino básico. Foi uma mudança substancial em relação a períodos anteriores. O que seria essencial? Prolongar esse processo, melhorando-o. Porque ninguém ignora que a qualidade do ensino público, nos níveis básicos, é lastimável. Sem melhorar essa qualidade, a idéia de educação pública se torna uma ficção: estaremos simplesmente contratando os desajustados e os desempregados de amanhã.

Esta seria a verdadeira Revolução. Mas o governo Lula gastou quatro anos de costas para o ensino fundamental, fazendo piruetas ineptas no plano das universidades federais. Não houve nem revolução nem continuidade; uma equação de soma zero.

A China de Mao também quis começar da estaca zero. Arrasou-se tudo o que tinha a ver com a velha sociedade chinesa. O custo disso foi o maior massacre dos tempos modernos - há quem estime em 60 ou 70 milhões a cifra de chineses mortos no período maoísta por erros econômicos (leia-se: fome) ou outras causas violentas. Tudo isso para cair na China de agora, que parece decidida a competir com os piores abusos dos inícios do capitalismo.

Na própria China, houve um precedente para isso: o do famoso imperador Shih Huang-ti, que unificou o país no século III antes de Cristo. Ele também queria começar do zero: denominou-se Imperador Um, a ser sucedido pelo Imperador Dois. Mandou queimar todos os livros (e se hoje sabemos de Confúcio, é porque houve quem escondesse obras clássicas debaixo da terra), e começou a construção da Grande Muralha. Ao morrer, teve o seu túmulo protegido pelos seis mil soldados de terracota que hoje fazem o encantamento dos turistas de todo o mundo. Quatro anos depois, a dinastia que ele fundara veio ao chão; e foi preciso começar tudo de novo.

Também aqui, teremos de assistir ao espetáculo do Imperador Um?

LUIZ PAULO HORTA é jornalista.