Título: ATRÁS DOS VOTOS
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 03/10/2006, O País, p. 4

O presidente Lula levou perto de 15 horas para aparecer em público depois do que pode ser descrita como uma derrota moral no primeiro turno da eleição presidencial. Além de não ter conseguido vencer no primeiro turno, coisa que dava por certa antes do surgimento do dossiê dos "aloprados" do PT, viu seu adversário Geraldo Alckmin surgir das urnas com uma votação de mais de 41%, nunca prevista em nenhuma pesquisa dos institutos de opinião. A diferença de menos de sete pontos percentuais de um para outro mostra que a disputa no segundo turno será muito mais apertada do que se previa.

Para se ter uma idéia, a pesquisa Datafolha feita no sábado anterior ao pleito, que apontava uma diferença surpreendentemente pequena de cinco pontos num eventual segundo turno, previa que Lula lideraria o primeiro turno com uma vantagem de 12 pontos. Sendo a diferença nas urnas de praticamente a metade, não será de espantar se já na primeira pesquisa de segundo turno os institutos apontarem um empate técnico entre os dois candidatos. No mínimo porque o momento é mais favorável a Alckmin que a Lula.

Num esforço de última hora, Lula encerrou sua campanha com comícios bastante agressivos contra a elite brasileira, que supostamente estaria interessada em não permitir que levasse logo a vitória, e contra a mídia, que estaria refletindo esse sentimento das elites.

Lula, que se vangloria de ser uma espécie de "cyborg" montado com os braços, as pernas, o corpo e o coração do povo brasileiro, chamou a reta final da eleição de "a hora de a onça beber água" e anunciou, para delírio da sua galera, que "esta oncinha aqui está com sede".

Tentava a todo custo manter o mito da invencibilidade em pé, quando tudo desmoronava a seu redor. Como singelamente explicou ontem, na hora da onça beber água faltaram votos e a "oncinha" teve que adiar por mais quatro semanas a vitória, que continua dando como certa.

O Lula afável, que aceitou responder a algumas perguntas, é a imagem "made by João Santana" do candidato que vai disputar o segundo turno com as sandálias da humildade que não calçou no primeiro, porque este "já estava no papo", como comentou quando explodiu no seu colo a bomba do dossiê comprado com dinheiro ilegal por membros de sua campanha de reeleição.

Se o presidente-candidato está tão curioso, como mais uma vez demonstrou, por saber quem montou essa armadilha que acabou sendo um tiro no próprio pé, poderia perguntar a qualquer um dos seus amigos acusados, que estão por aí, livres, leves e soltos. Uma conversa ao pé da churrasqueira certamente esclareceria muita coisa, se é que Lula realmente não sabe de nada.

Nas 15 horas em que esteve desaparecido, Lula não se entregou à depressão, mas começou a articular as alianças para o segundo turno. Conversou com o senador Sérgio Cabral, candidato do PMDB do Rio que não se alinhava a seu grupo político. Vai ser interessante ver como essa negociação vai se dar, pois o grande padrinho da candidatura Cabral era o ex-governador Garotinho, que já anunciou que contra Lula faz qualquer acordo.

Lula, no entanto, demonstrou considerável força pessoal no Rio, pois teve mais da metade dos votos num estado em que, em teoria, o grupo de seu adversário político domina. Mas na prática a teoria é outra, e tudo indica que a força de Garotinho hoje serve apenas para ajudar a eleger um candidato a deputado federal chamado Pudim, e que mesmo assim teve menos votos que Fernando Gabeira, político sem esquemas que não sejam suas opiniões e atitudes.

Lula também teve o cuidado de não voltar a criticar nem as elites, nem a mídia, muito menos o eleitor, ao contrário do que fizeram seus auxiliares diretos. O coordenador da campanha, Marco Aurélio Garcia, continuou ontem a denunciar uma conspiração da mídia contra a candidatura de Lula, e ameaçou denunciá-la durante este segundo turno.

Segundo ele, há testemunhos e gravações de que o delegado que vazou para a imprensa as fotos da montanha de dinheiro apreendido com os petistas num hotel em São Paulo disse que o faria para prejudicar o PT.

Garcia acusa os jornalistas de terem ouvido a confissão do delegado e não o terem denunciado, mas nenhum jornalista admite esse diálogo e a tal gravação ainda não apareceu, se é que existe mesmo. O presidente Lula foi mais discreto, e admitiu que, se o dinheiro existe, teria que ser mostrado mesmo. Essa cordialidade toda é a mesma demonstrada por seu adversário, o tucano Geraldo Alckmin, e quem se seguir por essas primeiras demonstrações de amabilidades pode se enganar.

Lula, por estratégia, e Alckmin, por formação, não se atacarão mutuamente, mas suas campanhas serão agressivas. Atacarão pelas bocas de outros, e os programas televisivos de propaganda eleitoral gratuita cuidarão de levar ao grande público as mazelas de cada um. Enquanto a investigação sobre esse dossiê não esclarecer de onde veio o dinheiro, quem o sacou, quem o entregou aos petistas, esse será o tema dominante da campanha, embora vá ser tratado como se fosse um tema acessório.

Um terá que tentar ampliar sua penetração no Nordeste, outro terá que reduzir a diferença no Sul. Mais uma vez, São Paulo e Minas serão fundamentais, como já o foram no primeiro turno. Mas o mais importante será constatar o que realmente faz a cabeça do eleitor brasileiro: se a economia ou se ética na política.

Ao contrário do que se temia, há demonstrações claras de que, havendo tempo, dissemina-se pelo país a informação e o eleitorado reage demonstrando sua indignação nas urnas.