Título: NÃO SE PODE ESPECULAR EM CENÁRIO DE DOR
Autor: CLÁUDIO MAGNAVITA
Fonte: O Globo, 03/10/2006, Opinião, p. 7

Nos três dias que se seguiram ao acidente com o avião da Gol, os parentes dos 149 passageiros e dos seis tripulantes foram submetidos a um calvário nunca visto anteriormente na história de outras tragédias na aviação comercial brasileira. A inabilidade de centralizar em um só interlocutor as informações sobre o acidente e permitir que ocupantes de funções públicas - o que lhes garantem credibilidade como fonte - viessem a público fomentar especulações e tratar o caso pela ótica de tecnicidade, ignorando o desespero de famílias inteiras e da própria comoção de toda a sociedade brasileira, é repugnante.

Tudo isso é resultado do fim de um modelo preexistente, que ordenava nossa aviação civil até o início deste ano. Em casos como este, seguia-se um ritual de caserna, com total obediência à hierarquia militar. Pode-se ver, agora, que as coisas ficaram frouxas com a criação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Se a entidade tem um presidente, por que permitir que uma diretora entre em cena nas coletivas e até promova embates com a imprensa e familiares das vítimas, como ocorreu no último domingo?

A advogada Denise Abreu, que antes de ser nomeada para a Anac foi a fiel escudeira jurídica do ex-ministro José Dirceu na Casa Civil, protagonizou um infeliz confronto com os jornalistas ao realizar um bate-boca sobre os resgates dos corpos. Foi lamentável também que tenham levado a angústia dos familiares ao extremo, a ponto de eles tentarem entrar à força na coletiva concedida pela Anac em Brasília, em busca de notícias que lhes eram sonegadas.

Neste cenário de confusão surge também a Infraero, que, apesar de ser uma empresa destinada à infra-estrutura aeroportuária e responsável pela radiofonia das aeronaves (e, portanto, não ter como atribuição apurar os sinistros ocorridos fora dos seus aeroportos), passou, através do seu presidente, o brigadeiro J. Carlos Pereira, a exercer dons premonitórios e a especular - inocuamente - sobre diversos cenários do acidente. Tudo na base da dedução e na experiência de ex-piloto do seu dirigente maior, mas sem qualquer informação privilegiada. Para o leigo, não é possível separar a opinião pessoal do aviador J. Carlos Pereira de sua palavra como presidente de uma estatal do setor aéreo nacional.

Pior, e ainda mais grave, foi a (des)informação do secretário de Estado do Mato Grosso, que chegou a afirmar que existiam sobreviventes e que eles estariam chegando no hospital. Essas especulações e informações desencontradas - muitas vezes ditas até com rispidez - não respeitam o sentimento de perda abrupta de um ente querido que as famílias estão vivenciando.

Outra vítima desse desencontro de informações é a própria companhia aérea. A Gol, vulnerabilizada perante o poder concedente, está fazendo a sua parte na assistência aos familiares, e estabeleceu uma comunicação correta, com os seus dirigentes participando de coletivas e criando um canal online para os seus comunicados. Prende-se somente aos fatos e demonstra respeitar profundamente a dor que o episódio gerou a terceiros e à sua própria estrutura.

A Anac agora vive o seu batismo de fogo. Ao contrário do que poderia pensar parte dos seus diretores, os seus mandatos foram outorgados pela sociedade civil e, por isso, eles devem prestar contas e continência ao povo brasileiro, exercendo os seus cargos de forma respeitosa e transparente. Devem coordenar cada passo deste episódio e evitar que a agência se transforme na 156ª vítima fatal deste acidente. Para o público, o governo é um só. É preciso que o Ministério da Defesa, que o Comando da Aeronáutica e a própria Anac promovam ordem na casa.

CLÁUDIO MAGNAVITA é jornalista.

N. da R.: Excepcionalmente, Ali Kamel não escreve hoje.

É repugnante o desrespeito aos parentes das vítimas do acidente aéreo