Título: Legacy pode ter desobedecido a ordem de torre
Autor: Regina Alvarez, Bernardode la Peña e Martha Beck
Fonte: O Globo, 03/10/2006, O País, p. 24

Investigadores suspeitam que avião não baixou altitude para 36 mil pés a partir de Brasília, ficando na rota do Boeing

BRASÍLIA e CUIABÁ. Novas informações recolhidas pelos órgãos do governo encarregados da investigação das causas da queda do Boeing 737-800 da Gol revelam fortes indícios de que o jato Legacy, pilotado pelo americano Joe Lepore, pode ter contrariado orientação da torre de comando da Aeronáutica, na decolagem em São José dos Campos (SP), permanecendo na rota do Boeing. Esse comportamento pode explicar as causas do acidente que matou 155 pessoas.

Segundo informações apuradas pelos investigadores, o piloto do Legacy pediu autorização para voar a uma altura de 37 mil pés - a mesma que o Boeing vinha usando desde Manaus. No dia do acidente, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) informou que o Boeing da Gol estava a 36 mil pés. Informação que contraria a regra do controle de vôo no país. As aeronaves que partem do Norte em direção ao Sul sempre usam rotas ímpares em níveis de vôo, como 35 ou 37 mil pés. Já os aviões que partem do Sul em direção ao Norte, os níveis são pares. Por isso o Legacy tinha que estar a 36 ou 38 mil pés.

Voar "na contramão", só sem tráfego aéreo

Voando a 37 mil pés em vez de 36, o piloto do Legacy economizaria combustível. Uma fonte da Infraero esclareceu que uma aeronave pode voar "na contramão" em situações especiais, quando não há tráfego aéreo. Foi o que teria acontecido com o Legacy na primeira etapa de sua viagem em direção a Manaus.

O comandante da Aeronáutica, brigadeiro Luiz Carlos Bueno, confirmou ontem que o plano de vôo do Boeing estabelecia uma altitude de 37 mil pés e o do Legacy, 36 mil pés. Ele também disse que os dois se chocaram a 37 mil.

- O Boeing estava a 37 mil pés e eles e bateram porque o Legacy também estava a 37 mil pés - afirmou o brigadeiro, que depois tentou amenizar suas declarações, acrescentando:

- Não temos informação, mas alguém saiu de seu plano de vôo.

Na última sexta-feira, o Legacy recebeu autorização para se manter aos 37 mil pés somente no trajeto entre São José dos Campos e Brasília. A partir daí até Manaus, teria que descer para 36 mil pés. Mas o Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego (Cindacta) de Brasília perdeu o contato com o sistema "transponder" da aeronave, que mostra a sua localização no radar, logo depois que o Legacy passou pela capital federal. O contato só foi retomado após o choque, quando o piloto pediu orientação para pouso ao Cindacta de Manaus. No trajeto entre Brasília e Mato Grosso, onde ocorreu o choque entre as duas aeronaves, o Cindacta de Brasília ficou sem comunicação alguma com o jato. O rádio e o transponder pararam de funcionar, mas voltaram logo após a colisão, o que leva a duas linhas de investigação: falha no equipamento ou a possibilidade de o equipamento ter sido desligado exatamente para evitar que os radares detectassem o descumprimento das recomendações da torre.

O Boeing 737-800 tinha autorização do Cindacta de Manaus para voar a 37 mil pés e não há registros no sistema de controle de tráfego da Aeronáutica de que tenha se desviado da rota. Segundo essa linha de investigação, a colisão aconteceu porque o piloto do Legacy teria se mantido na altitude de 37 mil pés sem autorização do Cindacta de Brasília.

O que mais chamou a atenção dos técnicos que atuam na investigação das causas do acidente com o Boeing é que todos os equipamentos do jato Legacy voltaram a funcionar normalmente logo após o choque com o avião da Gol, depois de um período relativamente longo sem comunicação. Os sistemas de controle do tráfego aéreo detectaram que o "transponder" do Legacy parou de funcionar pouco depois de o jato passar por Brasília em direção a Manaus, onde faria um reabastecimento para seguir em direção aos EUA. O jato fabricado pela empresa Embraer, de São José dos Campos, estava fazendo o vôo inaugural, após ser adquirido por um grupo de empresários americanos.

Juiz manda apreender passaportes de tripulantes

O juiz da comarca de Peixoto de Azevedo (MT), Tiago Souza Nogueira de Abreu, determinou ontem a apreensão dos passaportes dos americanos Joseph Lepore e Jean Paul Paladino para evitar que eles deixem o Brasil antes da conclusão das perícias feitas pela Aeronáutica para apurar as causas da queda do Boeing 737-800 da Gol. Os dois são o piloto e co-piloto do Legacy. O delegado Anderson Garcia, um dos responsáveis pelo inquérito que apura as causas e eventuais responsáveis pela queda do avião da Gol, informou que vai pedir cópias das perícias feitas pela Aeronáutica nas caixas-pretas dos dois aviões envolvidos no acidente, relatórios das torres de comando de Manaus e Brasília, responsáveis pelo controle aéreo dos dois vôos, e pode até convocar para depor na Polícia Civil do Mato Grosso os controladores de vôo que estavam trabalhando no momento em que os dois aviões se chocaram. A idéia é esclarecer as circunstâncias do acidente e apurar se houve alguma falha na comunicação entre as duas torres e os aviões.

Em Peixoto de Azevedo, o juiz local decidiu atender ao pedido feito ontem pela manhã pelo promotor Adriano Roberto Alves para retenção dos passaportes dos pilotos do Legacy. O juiz determinou que os americanos fiquem no Brasil até que seja verificada a "autenticidade das informações prestadas por eles". Lepore e Paladino e os cinco passageiros do avião prestaram depoimento na Polícia Civil de Mato Grosso na madrugada de domingo. O juiz e o promotor receberam cópias do depoimento no mesmo dia.

A Polícia Federal, que pode atuar em todo país, foi acionada ontem para cumprir o mandado de busca e apreensão. Os americanos não foram encontrados em São José dos Campos, porque já estariam na cidade de São Paulo. Dois dos passageiros do avião já retornaram aos Estados Unidos.

O promotor explicou que fez o pedido de retenção dos passaportes por causa da necessidade dos policiais ouvirem o piloto e o co-piloto do Legacy novamente já tendo o resultado das perícias, que devem ser finalizadas esta semana, em mãos.

- O Ministério Público entende que serão necessários novos depoimentos após a conclusão da perícia. Por isso é importante que ouçamos os dois logo. Se tivermos que ouvi-los em seu país de origem, o procedimento pode demorar anos. O cumprimento de uma carta rogatória é extremamente moroso - afirmou o promotor.

*Enviado especial

"O Boeing estava a 37 mil pés e eles e bateram porque o Legacy também estava a 37 mil"

LUIZ CARLOS BUENO

Comandante da Aeronáutica