Título: ESTADO NEGLIGENTE
Autor: GABRIEL FIGUEIREDO PADILLA
Fonte: O Globo, 05/10/2006, Opinião, p. 7

Passado cerca de um mês do trágico acidente de automóvel na Lagoa, que resultou na morte de cinco jovens amigos de 16 a 22 anos, cabe agora uma reflexão da extensão dos danos que também atingiram a sociedade.

A dor da perda devastadora causada aos pais e o luto que sofrem irmãos, familiares, amigos e colegas do colégio são enormes e irreparáveis. A ausência dos jovens mortos que eram filhos únicos certamente deixa uma desolação a mais em seus pais. Quanto aos outros, que tinham irmãos, estes conferem a seus pais uma força a mais por que lutar, procurar aceitar o inaceitável e se agarrar mais ainda a esses filhos, buscando amparo pela inestimável perda. Afinal, nossos filhos são nossa busca pela eternidade e da certeza de que aqui ainda permaneceremos, através deles, quando não mais aqui estivermos.

Ana Clara, Joana, Manoela, Ivan e Felipe eram jovens adoráveis e cujos pais pertenciam a uma classe social que lhes permitiu dar a eles as melhores condições de se prepararem para o futuro. Os rapazes estavam na faculdade, praticavam esportes e outras atividades, como teatro, que abriam os horizontes para o aprimoramento pessoal. As meninas sempre estudaram em um colégio de bom padrão, eram ótimas alunas, aprendiam idiomas e faziam aulas de jazz juntas. Todos tiveram a oportunidade de realizar viagens culturais, de lazer e de intercâmbio estudantil no exterior, aumentando suas bagagens de experiência de vida.

Minha filha Ana Clara, por quem posso falar melhor, tinha uma enorme facilidade de comunicação interpessoal nata e exercia uma liderança natural entre seus colegas, em razão de seu carisma. Sabia reivindicar e defender seus pontos de vista com doçura e firmeza, demonstrando grande capacidade de argumentação.

Enfim, eram jovens de excelente formação moral, cultural, com sólidas bases acadêmicas e outras capacidades de aprimoramento pessoal em elaboração. Vislumbrava-se em seus horizontes um futuro bastante promissor nas áreas de atuação de suas escolhas.

A perda pessoal de seus pais é irreparável, mas certamente perde também a sociedade. Terminou abruptamente em tragédia todo o investimento acadêmico, de formação de caráter e de valores familiares, feito em jovens que se preparavam para ocupar seu lugar, em um futuro próximo, numa sociedade carente de cidadãos e profissionais que contribuam para o bem comum e agreguem valor. A perda é grande, pois uma sociedade é o somatório dos valores individuais de seus cidadãos, e, quanto mais bem preparados estes, melhor é aquela sociedade.

À tragédia desses jovens somam-se inúmeros outros casos iguais que se repetem numa freqüência macabra com outros jovens de semelhantes condições familiares e socioeconômicas. Como bem analisou a dra. Elizabeth Süssekind em artigo recente publicado no GLOBO, a família é o primeiro fator de proteção dos jovens, mas ¿a realidade é que, batida a porta de casa, a decisão e a escolha estão mesmo nas mãos dos jovens¿. É o livre arbítrio! ¿E é por isso mesmo que o Estado tem que entrar, e ele é o segundo fator de possível proteção.¿

Por mais dedicados, presentes, orientadores e até controladores que sejam, a atuação dos pais tem limite. E, quando se espera que o Estado cumpra sua parte, é aí que nós, cidadãos, constatamos o quanto estamos órfãos e entregues à própria sorte.

A negligência do Estado é flagrante, não só nessa questão como em várias outras que envolvem a segurança e a vida dos cidadãos. Não vou enumerar aqui um rosário de questões relativas a leis brandas, um Legislativo e um Judiciário lenientes, um Estado que não educa, não protege e não reprime. Uma fiscalização inexistente, uma polícia despreparada, mal equipada, mal remunerada e que leva a distorções flagrantes de conduta. Ou seja, todo um somatório de situações que levam a certeza da impunidade. Essa omissão dos poderes constituídos é impensável em países minimamente civilizados, onde a atuação do Estado se faz presente, exercendo seu papel de impor limites em benefício da sociedade.

Segundo dados estatísticos, entre 1980 e 2000, o índice de mortalidade entre jovens de 16 a 29 anos aumentou 18%, o que significa milhares de vidas de jovens ceifadas, de diversas classes socioeconômicas. As mortes por causas violentas são cada vez mais numerosas e num ritmo crescente. O Brasil está perdendo sua juventude.

Portanto, volto a insistir que a sociedade também perde como um todo, e, se o Estado, em complemento à família, efetivamente não fizer a sua parte de investir, cuidar e proteger tanto as crianças como os jovens, infelizmente não haverá um Brasil amanhã.

GABRIEL FIGUEIREDO PADILLA é arquiteto e pai de Ana Clara, uma das cinco vítimas fatais do acidente ocorrido na Lagoa.