Título: O DILEMA MORAL NA TAILÂNDIA
Autor: GILBERTO SCOFIELD JR
Fonte: O Globo, 07/10/2006, Opinião, p. 7

Num momento em que mais de 120 milhões de brasileiros exercem seu direito democrático de escolher o governante do país pelos próximos quatro anos, a sombra do autoritarismo volta a assustar a Ásia, com o golpe militar que derrubou do cargo o primeiro-ministro da Tailândia, Thaksin Shinawatra. Os tailandeses vivem hoje um dilema moral que deriva das justificativas do golpe em si.

E o pior: até os tanques tomarem as ruas de Bangcoc, na noite do dia 19 de setembro, o cenário político na jovem democracia tailandesa (o último golpe de Estado havia ocorrido em 1991) mantinha uma assustadora semelhança com a situação de muitos governos de países emergentes, não apenas da Ásia mas da América Latina.

Em nome da busca pelos dólares que vão garantir um crescimento econômico acelerado ¿ caso da maioria dos países asiáticos ¿ ou em nome de uma suposta redução das desigualdades sociais ¿ caso da América Latina ¿ governos vão costurando de forma escusa apoio a reformas legais que terminam por aumentar seus poderes. Ou tentam calar os descontentes buscando amordaçar a imprensa e botar na cadeia os dissidentes, ao mesmo tempo em que acenam com políticas sociais assistencialistas que buscam seduzir os mais pobres; ou fazem vista grossa a um mar de corrupção ao seu redor como forma de manter a elite política calada, inclusive em benefício do próprio bolso (ou dos bolsos de quem os apóia). E nada muda. Ou muda muito pouco.

Segundo Sonthi Boonyaratglin, comandante-chefe das Forças Armadas que liderou o golpe na Tailândia, Thaksin foi deposto porque ¿representava uma ameaça à democracia, ao buscar enfraquecer as instituições do país para aumentar seu poder¿. É uma desculpa esquizofrênica para justificar sua própria arbitrariedade. O golpe, que desconsiderou a reeleição de Thaksin por 16 milhões de votos ano passado, é vendido pelos militares como a salvação de uma democracia em frangalhos.

De fato, Thaksin caiu por um misto de soberba e inabilidade política. Não soube separar interesses pessoais de interesses públicos (em janeiro, sua família vendeu o controle da empresa de telecomunicações Shin Corp, orgulho nacional, para um grupo de Cingapura, por US$1,9 bilhão, sem pagar um centavo de imposto). Menosprezou as lideranças militares (trata-se do 18º golpe militar desde o fim da monarquia absolutista, em 1932, o que dá um golpe a cada quatro anos, em média). Ignorou uma das mais tradicionais instituições da Tailândia, a monarquia, personificada no rei Bhumibol Adulyadej, um semideus. Julgou automático o apoio popular a seu governo ao criar uma espécie de seguro-saúde universal em que os tailandeses mais pobres pagam apenas 30 bahts (R$1,74) para ter assistência médica.

Apesar do programa de saúde ¿ que muitos chamam de eleitoreiro ¿, hoje, duas semanas após o golpe, pesquisa mostra que 83% dos tailandeses aprovaram a derrubada de Thaksin. Enquanto o golpe militar como instrumento de mudança política é rejeitado pela maioria das sociedades do planeta (inclusive a tailandesa), há na população do país um alívio envergonhado com a deposição.

Há nisso um imenso perigo. Chaiwat Satha-Anand, professor de ciência política da Thammasat University e fundador da ONG Peace Information Center, explica o estado de ânimo dos tailandeses e, de resto, de sociedades frustradas em países emergentes por todo o planeta:

¿O custo moral da falta de esperança de uma sociedade em si mesma e da falta de habilidade desta sociedade para resolver problemas políticos de forma pacífica precisa ser levado em consideração como o preço que uma sociedade tem que pagar por um golpe¿, diz ele. ¿Eu argumentaria que um golpe de Estado, a despeito do fato de que ocorreu sem derramamento de sangue e provavelmente tenha sido por uma boa causa, é errado pelo que traz para uma sociedade que o julga correto. Aceitá-lo significa aceitar a tese de Mao Tsé-tung de que `o poder emana do cano de um revólver¿ e que a violência ou a ameaça de violência é o árbitro final dos conflitos políticos e não o poder das palavras ou da persuasão racional.¿

GILBERTO SCOFIELD JR. é jornalista.