Título: A VIRADA DE TAPERA, CIDADE QUE JÁ FOI A MAIS POBRE DO PAÍS
Autor: José Meirelles Passos
Fonte: O Globo, 08/10/2006, O País, p. 26
Programas sociais reduzem mortalidade infantil e analfabetismo no sertão alagoano
SÃO JOSÉ DA TAPERA (AL). Enoque dos Anjos, de 45 anos, está quase convencido de que deve ir à escola. Mas não junto com os seis filhos. Ele, afinal, tem que trabalhar durante o dia. E, sobretudo, se sentiria envergonhado sentado em meio à criançada. Mas é bem capaz de o ex-boiadeiro, cuja minguada renda ganha na lavoura na época das chuvas é reforçada com o que ele fatura no resto do ano em sua pequena olaria doméstica, se animar a fazer matrícula num curso noturno ¿ como já fizeram muitos outros adultos analfabetos desta cidadezinha no sertão alagoano.
¿ Ando pensando muito nisso. O progresso está chegando e eu não quero ficar para trás, vivendo uma vida de jegue ¿ disse ele, enquanto assentava no terreno ao lado de seu casebre os tijolos que acabara de produzir ali, sozinho, sob sol a pino.
Sinal dos tempos. Seis anos atrás Tapera ficou tristemente famosa quando a Organização das Nações Unidas (ONU) a apontou como o pior município do Brasil, tendo o mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), com níveis altíssimos de mortalidade infantil e de analfabetismo, além de renda per capita em frangalhos.
¿Fiquei triste e chateado ao ligar a televisão. Ver a minha cidade nas entranhas do sertão, como a mais pobre e miserável, fez doer o meu coração¿ [Trecho do folheto de cordel ¿A cidade mais pobre do Brasil¿, de Valdir José dos Santos]
Hoje, porém, Tapera está se destacando justamente pelo oposto: apresenta um dos melhores desempenhos dos 5.564 municípios brasileiros.
¿ A carência ainda é muita. Mas estamos dando a volta por cima. De vergonha nacional, estamos virando modelo ¿ disse, com orgulho, o prefeito José Antonio Cavalcante, de 40 anos.
Não é para menos. A mortalidade infantil que seis anos atrás era de 147 por mil nascidos vivos, agora é de 49. Apenas 30% da população tinham energia elétrica naquela época; hoje, 60% dispõem desse serviço. Sete de cada dez habitantes eram analfabetos; agora são cinco. Sem contar que 92% dos residentes não tinham renda suficiente para se manter e o índice hoje é de cerca de 11%.
Milagre? Não. Tapera está mostrando que doses apropriadas de sensatez e disposição política são armas eficazes no combate à pobreza, embora o dinheiro seja pouco. Este ano, o governo municipal dispõe de R$21 milhões para manter a cidade de 29 mil habitantes, dos quais 20 mil vivem na zona rural. Isso significa um investimento de R$724 anuais por pessoa. Ou nada mais do que R$1,98 per capita, por dia.
O segredo da virada com recursos tão modestos está no custeio de programas essenciais de saúde e educação. E, sobretudo, num raro exemplo de continuidade. A vergonha causada pelo informe da ONU levou o então presidente Fernando Henrique Cardoso a se apressar para socorrer Tapera, em parceria com a prefeitura. Luiz Inácio Lula da Silva chegou ao poder e manteve essa política crucial para um município em que 95% da arrecadação vêm de verbas federais. Os taperenses andam apreensivos: temem a interrupção dos programas que vêm tirando-os da miséria, caso Geraldo Alckmin vença a eleição.
¿Essa é mais uma história que nasceu no coração. Foi passada para o livro/e não é de ficção. É a triste realidade/de quem vive no sertão. Desde Dom Pedro que só prometem no tempo de eleição¿ [Trecho de ¿A cidade mais pobre do Brasil¿, folheto de cordel]
Um dos aspectos mais significativos da recuperação progressiva é a conquista da dignidade. Os taperenses são unânimes em afirmar que querem ajuda, e não esmolas:
¿ Um claro sinal disso é que eles vêm tomando iniciativas para não depender mais do governo, como a criação de seus próprios bancos de sementes para manter a lavoura ¿ contou Maria da Paz, do Centro de Apoio Comunitário Cactus, que trabalha em parceria com a ONG Visão Mundial.
Essa cidade do agreste, produtora de milho e feijão, onde sete de cada dez pessoas eram analfabetas em 2000, hoje tem nada menos do que 55 escolas. Três são do estado e 52 da prefeitura, a maioria delas espalhada pelos cinco povoados e 65 sítios pertencentes ao município. A situação melhorou tanto que Tapera se gaba de uma ironia: hoje sobram professores ali. Mais: ano que vem a cidade que não sabia ler ganhará uma faculdade. É uma parceria entre um grupo de Brasília e a prefeitura local, que cedeu o terreno, fornecerá o material de construção e o transporte dos alunos.
O prefeito é um reflexo da nova mentalidade. Filho de pedreiro e costureira, ele ajudou a família vendendo picolés, varrendo praças, trabalhando em construção. Mas os pais jamais permitiram que faltasse às aulas:
¿ O problema que tínhamos até pouco tempo era que na época de plantio e de colheita muitas crianças matavam aulas para ajudar os pais na roça, repetiam de ano e deixavam a escola. Com o Bolsa Família, isso praticamente acabou.
Nada menos do que 16 mil pessoas ¿ 55% da população ¿ são beneficiadas pelo programa, com salários de R$15 a R$95 por mês. A zona urbana já dispõe de água potável encanada. A rural conta com cisternas feitas pela prefeitura, abastecidas por carros-pipa quando a captação de água das chuvas não é suficiente. Problema ainda grave é o saneamento: simplesmente não há. O esgoto corre a céu aberto em todo o município.