Título: PEDREIROS RELATAM ÚLTIMOS INSTANTES DO AVIÃO
Autor: Jailton de Carvalho
Fonte: O Globo, 08/10/2006, O País, p. 28
Três testemunhas viram quando Boeing desceu como uma folha, embicou, em meio à fumaça, e caiu na mata
PEIXOTO DE AZEVEDO (MT). No finalzinho do expediente da sexta-feira, 29 de setembro, Ivair Strege Bernardo, um dos pedreiros contratados para fazer um lava-jato nos confins da sede da Fazenda Juruna, em Peixoto de Azevedo, levantou-se para apanhar um pouco mais de massa numa betoneira próxima ao canteiro da obra. Num relance, deparou-se com a maior tragédia da aviação brasileira.
¿ Olha o avião lá, olha, olha! Acho que vai cair. Vai cair ! ¿ gritou.
Os colegas Marquinhos e Lobão, que também estavam ali, levantaram os olhos na direção leste e ficaram pasmos com a cena. Bernardo, Marquinhos e Lobão são, até agora, as únicas testemunhas da queda do Boeing 737-800, da Gol, na densa mata próxima ao Parque Nacional do Xingu, terra dos temidos índios caiapós e caputos, no norte do Mato Grosso.
Depoimentos ajudarão investigação da Aeronáutica
Os três foram interrogados pelo delegado Luciano Inácio da Silva, da Polícia Civil de Cuiabá, encarregado das investigações sobre as causas do acidente. O delegado apura de quem são as responsabilidades pela morte de 154 passageiros, o maior número de vítimas já registrado num acidente aéreo no país. Cópias dos depoimentos já estão em poder da Comissão de Investigação da Aeronáutica. As versões apresentadas pelos pedreiros deverão se somar às informações das caixas-pretas do Boeing e do Legacy, o jato envolvido no acidente.
Localizado pelo GLOBO na casa de um amigo, em Matupá, na sexta-feira, Bernardo recontou o caso narrado à polícia. O pedreiro disse que viu com nitidez o avião despencar no meio da mata, numa distância de aproximadamente 20 quilômetros da sede da fazenda Juruna, onde ele estava na hora do acidente. A propriedade faz divisa com a fazenda Jarinã, onde a FAB montou um base de apoio às operações de resgate dos corpos.
Era uma tarde clara de sol quente e céu limpo. O avião surgiu de repente do meio de algumas poucas nuvens, fez um movimento em forma da letra S, cuspiu grossas colunas de fumaça, embicou e, em frações de segundo, desapareceu na floresta.
¿ O avião desceu como uma folha, jogando de um lado para outro. Acho que demorou um 30 segundos. Estava inteiro, tinha as duas asas. Se tinha algum estrago, não dava para ver ¿ relembra.
O 737-800 caiu depois de ser atingido pelo Legacy. Bernardo não chegou a ouvir o estrondo da queda e, naquele momento, ainda não estava certo de que o avião de fato se espatifara no chão. O barulho da queda fora sufocado pela zoeira do motor da betoneira, que trabalhava a todo vapor. Alertado pelos pedreiros, o capataz da fazenda correu até um velho rádio-amador e avisou ao chefe da pista de pouso de Matupá, Renato Gomes, sobre o possível acidente. Os peões voltaram ao trabalho e só por volta das 21 horas, sintonizado na rádio Nacional de Brasília, Bernardo obteve a confirmação da tragédia.
¿ O jornal na televisão não falou nada e meus amigos até tiraram sarro da gente. Eles acharam que era mentira. Depois, eu ouvi no rádio que um avião tinha desaparecido. Logo depois, lá pelas dez horas, os aviões da Aeronáutica começaram a rodar por lá. O acidente foi ali mesmo ¿ afirma o pedreiro.
O operador de máquina Elizeu José Santana e a mulher dele, Ruth de Melo, também ouviram os instantes finais do vôo 1907, que levava 144 passageiros de Manaus para Brasília e para o Rio Janeiro. Santana estava num galpão, perto do lava-jato, quando ouviu os berros de Bernardo. O tratorista correu até o pátio, mas já era tarde. Só viu o riscado da fumaça cinza sobre a copa verde das árvores, o avião sumindo na mata e o estrondo, um barulho abafado vindo da mata.
¿ Vi o zigue-zague da fumaça e o estrondo forte. Parecia um trovão ¿ conta.
Dona Ruth, que estava colhendo tomate numa horta na outra extremidade da sede da fazenda, não ouviu os gritos do pedreiro e nem viu o marido e os amigos correrem para o pátio. Mas sustenta que escutou o estrondo do Boeing. Ela não sabe se foi o barulho de explosão da máquina ainda no ar ou do choque da carcaça da aeronave com as árvores de, em média, 40 metros de altura.
¿ Eu ouvi o barulho forte, igual a um trovão. Depois o pessoal me contou que achava que um avião tinha caído. Foi muito triste ¿ lembra Ruth.
Dois corpos foram achados afundados no chão
No dia seguinte, homens do Parasar (sigla em inglês do Serviço de Busca e Salvamento) da Aeronáutica começaram a constatar de perto a tragédia. Primeiro encontraram pedaços das ferragens do avião. Depois, se depararam com dois corpos afundados no chão.
A polícia considera que dificilmente encontrará outras testemunhas da queda do 737-800. A Juruna, um mega-latifúndio de 35 mil hectares, está a aproximadamente 220 Km de distância de Matupá. A estrada entre a cidade e a fazenda, uma tira vermelha na floresta, está quase sempre deserta. A área do acidente, que fica a cerca de cinco quilômetros do limite entre a Juruna e o Parque Nacional do Xingu, é quase inacessível. Só é possível chegar ao local de helicóptero. A mata, extremamente densa, e o perigo de animais selvagens praticamente inviabilizam caminhadas por ali.
¿ Acho que os depoimentos dos pedreiros já são suficientes. Agora vamos esperar o resultado da perícia que está sendo feita pela Aeronáutica ¿ disse o delegado Inácio Silva.