Título: FÉ EM CRISE, TEMPLOS À VENDA
Autor: Alessandro Soler e Ana Lúcia Borges
Fonte: O Globo, 08/10/2006, O Mundo, p. 48

Queda de número de católicos na Alemanha, terra natal do Papa, leva Igreja a solução polêmica

Aascensão do cardeal Joseph Ratzinger ao trono da maior religião cristã do mundo, há um ano e meio, não foi capaz de conter a contínua queda do número de católicos na sua Alemanha natal. Num movimento que se arrasta pelo menos desde a década de 1950, a cada ano dezenas de milhares de pessoas abandonam a Igreja nesse país onde, ainda assim, 31,5% da população se mantêm fiel a ela. Entre 1990 e 2004, a redução foi de 8%, o equivalente a 2,27 milhões de alemães. Os números em baixa se traduzem em crise financeira. A Igreja, subvencionada por impostos eclesiásticos pagos pelos fiéis, tomou medida radical, já adotada antes pelos luteranos: pôs à venda ou para locação centenas de templos.

No bispado de Essen, na região industrial do Vale do Ruhr, o problema é particularmente grave. Entre 1974 e 2004 houve redução de 18,7% no número de católicos, a maior queda no país. Em 2005, o bispado fechou no vermelho em 70 milhões. Das suas 350 igrejas, cem serão vendidas ou alugadas, com expectativa de uma economia anual de 15 milhões. Mas o processo tem algumas restrições. E uma das mais polêmicas, num momento de relações estremecidas entre o Papa Bento XVI e as comunidades muçulmanas em todo o mundo, é a proibição de transformar os edifícios em mesquitas.

¿ Sim, um templo poderia virar um supermercado ou uma boate. Até mesmo uma sinagoga. Mas há orientação para que não se torne uma mesquita ¿ diz Herbert Fendrich, encarregado da venda das igrejas no bispado de Essen. ¿ Não temos problemas teológicos com os muçulmanos. A questão é psicológica. Nossos fiéis poderiam ficar feridos. Nessa região, a relação entre cristãos e muçulmanos não é boa, e a tensão poderia aumentar.

Choque com igrejas demolidas

No bispado de Berlim, que engloba diversas cidades e uma comunidade católica minguante, de 412 mil pessoas em 1990 para 380 mil hoje (pouco mais de 5% da população), também é proibida a transformação de igrejas em mesquitas. Contudo, lá elas tampouco podem dar lugar a sinagogas. O porta-voz do bispado da capital, Stefan Förner, alega que não seria uma boa idéia fazer templos de outras religiões em lugares antes dedicados a cultos cristãos:

¿ A história recente dos judeus na Alemanha fala por si. Quanto aos muçulmanos, não sei se sequer estão interessados. Grupos islâmicos moderados nos pediram que não vendêssemos a radicais, que considerariam isso uma vitória sobre o cristianismo.

Segundo o porta-voz, a Conferência dos Bispos da Alemanha estabeleceu hierarquicamente as possibilidades de utilização das igrejas desativadas: elas deveriam prioritariamente abrigar centros sociais católicos. Em segundo lugar, templos de outras designações cristãs. Em terceiro, centros culturais. Em quarto lugar, poderiam ser fechadas. E por fim, simplesmente demolidas.

¿ O desemprego e a perda de católicos provocaram crises em todos os bispados, até em Munique, onde há mais católicos. Os custos de manutenção da igreja e de uma mínima calefação, necessária no inverno, são altos. Por isso, fechar a igreja e deixar o problema para depois não é a melhor opção ¿ analisa Förner, para quem a eleição de um papa alemão não mudou o panorama.

Do patrimônio imóvel total de 200 mil metros quadrados do bispado de Berlim, 25% serão vendidos ou alugados ¿ o que equivale a 50 entre 217 templos. Desses, oito já foram alugados e dois, vendidos, todos para outras religiões cristãs. Duas igrejas, porém, foram demolidas, o que causou grande choque na comunidade. Uma delas veio abaixo para dar lugar a um supermercado; no terreno onde havia outra foi erguido um condomínio para idosos.

Para ser usadas como edifícios civis, as igrejas passam por uma cerimônia de dessacralização, perdendo o caráter religioso. Cabe às paróquias decidir de quais templos abre mão e, na medida do possível, cada uma ficará com pelo menos uma igreja.

¿ Mas isso nem sempre é possível. Em algumas cidades do bispado, os fiéis têm de percorrer até 50 quilômetros para ir a uma missa. Quando não há igrejas por perto, tomamos emprestado um templo protestante. O padre vai até lá e reza as missas ¿ conta o porta-voz.

Um dos bairros onde vivem mais estrangeiros em Berlim, a maioria muçulmanos, Kreuzberg perdeu um de seus três templos católicos. A Igreja de Santa Agnes, erguida em 1964 com tijolos retirados de escombros da Segunda Guerra, foi transformada há um ano na Igreja Evangélica Livre de Berlim, uma designação neopentecostal. Mais de 300 fiéis freqüentam os cultos, que são transmitidos ao vivo pela TV, aos domingos. Ao contrário do que ocorre com as religiões tradicionais, como a católica e a luterana, essa não vive de impostos.

¿ Temos muitas contribuições dos fiéis. Creio que a maior parte da comunidade aprovou a transformação ¿ cogita Christian Lasius, secretário da igreja.

Pelo menos uma vizinha não gostou tanto. Amanda Heiger, de 67 anos, católica, era freqüentadora da Igreja de Santa Agnes. Ela agora tem de caminhar por meia hora até o templo católico mais próximo:

¿ O padre nos preparou para a despedida, mas foi muito dolorosa, mesmo assim. Entendemos que a Igreja esteja em crise financeira, mas eles deveriam encontrar outra solução. Todos poderíamos ajudar. Não se pode abrir mão de uma casa de Deus assim, simplesmente.

Os repórteres viajaram a convite do Instituto Goethe