Título: NA TERRA E NO CÉU
Autor: FERNANDO PEDROSA
Fonte: O Globo, 09/10/2006, Opinião, p. 7

Não temos a menor idéia do custo dos acidentes aéreos em nosso país. Mas seríamos capazes de apostar em valores bem inferiores ao custo dos acidentes de trânsito nas rodovias brasileiras, cerca de R$27 bilhões, recentemente divulgado pelo Ipea.

O acidente com o Boeing da Gol afetou-me diretamente. Naquela tarde de sexta-feira encerrava-se uma semana de intenso trabalho em Brasília, por conta das atividades da Semana Nacional de Trânsito, e aguardávamos o embarque no vôo 1907 com destino ao Rio de Janeiro. Com quase duas horas de atraso sem qualquer explicação ou justificativa, fomos acomodados em outro avião e chegamos ao destino sem qualquer problema, mas ainda absolutamente desinformados. Na sala de desembarque, aguardando a chegada das bagagens e já com os celulares ligados, começava uma sucessão infindável de ligações dando-nos conta do acidente. A perplexidade foi geral e um confuso sentimento, misto de fragilidade, angústia e alívio, contaminava todos. A dimensão da tragédia comoveu o Brasil e mobilizou os meios de comunicação e uma complexa estrutura civil e militar, que partiu em busca de informações precisas e, mais do que isso, da identificação das suas verdadeiras causas. Afinal, o Brasil pode se orgulhar de apresentar um dos mais baixos índices mundiais em ocorrências desse tipo ¿ apesar do intenso tráfego aéreo em seu território ¿ prova da competência e da seriedade dos que atuam tanto na operação do transporte aéreo como no seu controle.

Pessoas inocentes, com sonhos e projetos de vida que foram violentamente interrompidos em meio a ferragens retorcidas. Exatamente como acontece no trânsito.

Mas por que no trânsito a reação não é igual? Será porque o acidente aéreo é um fenômeno raro e, por isso, quando ocorre surpreende? Ou será conseqüência direta da rígida observância das normas internacionais de prevenção e segurança, que não são flexíveis quando se trata do transporte da mais valiosa carga que existe, a vida humana?

No trânsito rodoviário, infelizmente, as coisas não funcionam assim. De tão freqüente, o acidente, geralmente provocado por imperícia, negligência e imprudência, é encarado pela sociedade com inexplicável naturalidade e tratado, até por algumas autoridades, com injustificável acomodação. As exigências legais e preventivas na circulação de automóveis são muitas vezes flexibilizadas, outras vezes pouco exigidas e respondem certamente pela enorme incidência de sinistros e pela banalização dos fatos. É legítimo afirmar que no trânsito brasileiro temos um Boeing lotado caindo a cada dois dias. É só fazer as contas: morrem por ano cerca de 40 mil pessoas, vítimas dessa crônica violência sobre rodas.

Desse lamentável episódio com o avião de passageiros, tenho apenas duas certezas. A primeira, a indescritível dor dos parentes das vítimas do mais grave acidente aéreo brasileiro. A segunda, que ao final de algum tempo um relatório completo e detalhado vai identificar as causas, apontar culpados e atribuir responsabilidades, com todas as conseqüências cíveis e penais.

A primeira certeza, a da dor, é eterna e exatamente igual para os familiares dos que morreram em acidente aéreo ou terrestre. Mas a segunda, a apuração rigorosa e a identificação das causas com as providências corretivas e punitivas decorrentes, não acontece, infelizmente, com a mesma intensidade no asfalto.

FERNANDO PEDROSA é coordenador da Câmara Temática de Educação para o Trânsito e Cidadania do Contran.