Título: SINTO MEU CORAÇÃO DILACERADO¿
Autor: Jailton de Carvalho
Fonte: O Globo, 10/10/2006, O País, p. 17

Eu tinha telefonado depois das 2h da manhã. No último mês, contamos juntos os dias que faltavam para nos reencontrarmos. Ele atendeu já rindo: ¿Estou dobrando as meias, fechei a mala¿. Conversamos amenidades por mais de uma hora. Se tivesse o poder de adivinhar o que viria pela frente, teria gasto o tempo declarando meu amor ou o convencendo a não pegar o vôo na tarde seguinte. Mas não, estávamos ansiosos demais para isso. Faltava apenas uma noite após um mês de separação.

Na manhã seguinte, telefonei cedo para dar bom-dia. A felicidade era tamanha que, depois de amamentar às 5h, não havia conseguido mais dormir. Ele ligou mais tarde, falou com a Larissa. Quis saber como estava o seu olhinho, já que há duas semanas ela havia levado uma cabeçada de um amiguinho na escola. Quis saber como estava o André e se era verdade que já estava rindo... Mesmo longe, Fred não perdia um momento da rotina de casa. Chegou a falar com a Larissa do medo que sentia de o André ¿ que completaria 2 meses no dia seguinte ¿ não o reconhecer. Possibilidade descartada de imediato por Lali, como carinhosamente chamamos nossa pequena. ¿Impossível, papitito¿.

Em sua sabedoria infantil, ela mais uma vez era a dona da razão: impossível não reconhecer o Fred. Quem o encontrou pela vida sabe o quanto ele era especial. Não digo isso apenas porque no momento sinto meu coração dilacerado de saudades, mas porque ele era, acima de tudo, uma pessoa boa. Era homem com alma de moleque. Sabia sorrir com os olhos. Imensos olhos azuis que me acompanharam por mais de dez anos. Que vigiaram meus passos, me orientaram nas horas difíceis, vibraram a cada conquista. Que brilharam intensamente há oito anos quando deixamos de ser um casal e nos tornamos uma família e que brilhavam vendo essa mesma família crescer.

Não tínhamos nada que nos destacasse no meio de tantas outras famílias. Apenas éramos felizes. Piloto por formação, ele acabou entrando para uma grande empresa e conquistou seu espaço sem precisar levantar a voz, ser rude ou desonesto. Fez sua carreira limpa. Me emociona muito saber que muitos no trabalho o consideravam um ¿filho¿. Filho de verdade de Dona Irene e Senhor Louis, irmão de Corinne, o Fred era família, era da Nonna, do Tio Georges, do tio André, do Tio Mimi... E com o tempo passou a ser do Daher, da Ângela, da Lílian... Como ele amou cada uma dessas pessoas!

Como marido, foi meu melhor amigo, meu príncipe. Nos conhecemos jovens, eu com menos de 20 anos. Lutamos muito para conquistarmos coisas pequenas e sonhos grandes. Há dois meses, havia se mudado para Manaus. Fizemos uma reviravolta em nossas vidas. No dia em que soube da transferência, segurou minha mão e me perguntou se eu iria com ele. Com o meu Fred, iria para qualquer lugar do mundo. Larguei o emprego e, uma semana depois de dar à luz, Fred nos deixou em Minas, na casa dos meus pais. Esperaria até dezembro. A Larissa acabaria o ano escolar, o André estaria maiorzinho para enfrentar a mudança.

Sei que preciso ser forte para mostrar aos nossos filhos a sorte que eles tiveram de ter o Fred como pai. Mostrarei o fundo do mar para as crianças como havíamos planejado, viajaremos para destinos improváveis que um dia pensamos em explorar ao deslizar nossos dedos pelo mapa... ¿Te amo. Estou chegando¿, foram as últimas palavras que ele me disse, já a caminho do aeroporto. E eu lhe digo agora, meu amor, que eu o estarei esperando. Para sempre.

* 29 anos, mulher de Frédérick André Anthony Michel, de 36 anos, funcionário da H. Stern recentemente promovido a gerente da Região Norte