Título: Acesso a remédios essenciais
Autor: MICHEL LOTROWSKA
Fonte: O Globo, 13/10/2006, Opinião, p. 7

Estamos assistindo à criação da Unitaid, também conhecida como Central Internacional de Compras de Medicamentos (para Aids, malária e tuberculose), resultado das iniciativas dos presidentes da França, Jacques Chirac, e do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, relacionados à taxação sobre passagens aéreas. Será que uma nova iniciativa deste tipo é necessária, útil e pode fazer a diferença na luta contra esses três problemas graves de saúde pública?

Ao contrário de outras iniciativas do gênero, a Unitaid terá fontes sustentáveis de financiamento (tarifas de passagens aéreas) para alimentar seus fundos. Sem a perspectiva de um financiamento de longo prazo, os países não podem implementar estratégias de ampliação do acesso ao tratamento para Aids ou modificar o tratamento para malária. A Unitaid não pretende desenvolver projetos, mas sim agregar valor àqueles já existentes, como os apoiados pelo Fundo Global de Combate contra HIV/Aids, Tuberculose e Malária.

A particularidade da Unitaid vem do seu objetivo de interferência pró-ativa nas forças de mercado dos medicamentos, estimulando a concorrência, garantindo compras e negociando diretamente com os produtores. A redução de 99% dos preços da terapia tríplice com medicamentos anti-retrovirais (ARV) mais antigos para o tratamento da Aids, entre 1999 e 2005, só foi possível graças à concorrência promovida pela produção e venda de medicamentos genéricos não patenteados nos países em desenvolvimento, provenientes principalmente da Índia, e à intervenção de instituições como a Fundação Clinton na negociação direta de preços com produtores genéricos. O preço passou de US$12 mil a US$128 por paciente por ano. A mesma Fundação Clinton estará liderando, dentro da Unitaid, este processo de negociação para conseguir preços melhores. No entanto, o desafio continua integral para os medicamentos ARV mais novos, sujeitos à proteção patentária.

Existe um compromisso da Unitaid de apoiar os países no uso de licenças compulsórias, conforme reafirmado na Declaração de Doha da OMC (Qatar, 2001) sobre o Acordo Trips e Saúde Pública. As reduções voluntárias de preços e os preços diferenciais praticados pelas empresas multinacionais não são suficientes, ameaçando os programas de acesso a medicamentos nos países em desenvolvimento. Dados do Fundo Global mostram que, em 2005, o Peru pagou mais de US$4 mil por paciente por ano apenas para o Kaletra (da Abbott); na Guatemala, o valor chegou a mais de US$6 mil. Sabe-se que o Fundo Global compra o Kaletra a menos de US$500 na África do Sul. Mesmo assim, US$500 ainda é caro apenas para um remédio, se comparados aos US$128 pagos para três medicamentos! Nesses casos de monopólio não existe política de estímulo à concorrência, a não ser que o uso do licenciamento compulsório seja apoiado para que versões genéricas sejam desenvolvidas a preços mais baixos. Somente desta forma poderemos esperar que o dinheiro das tarifas aéreas seja realmente destinado à compra de medicamentos para os pacientes de forma sustentável e que não sirva apenas para ampliar o mercado de preços altos das empresas multinacionais.

Outro desafio da Unitaid será conseguir os medicamentos que não necessariamente existem nas formulações adequadas, como é o caso das formulações pediátricas necessárias para tratar as milhares de crianças com HIV/Aids. A Unitaid pode contribuir para este desenvolvimento.

Na última Assembléia Mundial de Saúde, que contou com a participação de ministros da área, aprovou-se uma resolução que indicou claramente que o atual sistema de patentes não dá conta das necessidades de pesquisa e desenvolvimento dos pacientes dos países em desenvolvimento, corroborado por um recente relatório publicado pela Comissão de Propriedade Intelectual, Inovação e Saúde Pública da Organização Mundial da Saúde. É fundamental que a Unitaid, portanto, incorpore esses dados para realmente fazer a diferença na ampliação de acesso a medicamentos, de forma sustentável para os mais necessitados.

MICHEL LOTROWSKA é representante da Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais da Médicos Sem Fronteiras no Brasil.