Título: A LEI MARIA DA PENHA
Autor: CARMEN FONTENELLE
Fonte: O Globo, 21/10/2006, Opinião, p. 7

Anova lei que trata da violência doméstica e familiar, em vigor desde 22 de setembro, tem uma importância que logo será plenamente sentida pela sociedade brasileira. As mulheres estarão protegidas por amplo aparato médico e psicológico, com atendimento de assistentes sociais, e por medidas legais antes de difícil aplicação, como afastamento do agressor do lar comum, pensão alimentar imediata, preferência de julgamento e várias outras chamadas de ¿medidas protetivas de urgência¿.

É a Lei Maria da Penha, que ganhou o nome de uma professora de Fortaleza que ficou paraplégica depois que o marido, por ciúme, deu-lhe vários tiros e ainda a queimou com álcool e fogo. Depois de inúmeras tentativas de denúncia e reparação, ela só conseguiu algum resultado quando as organizações feministas levaram o caso à OEA, para obrigar ao cumprimento da Convenção de Belém do Pará. O Brasil foi condenado a indenizá-la em dinheiro. Com isso, o governo se mexeu, pressionou secretarias de Segurança dos estados, e então o marido foi preso, em João Pessoa, faltando 20 dias para o crime prescrever (porque 20 anos já se tinham passado). Ficou preso um tempinho. O presidente Lula sancionou então a nova legislação, a que deu o nome de Maria da Penha.

Os agressores também foram objeto de atenção da lei, seja pelo aumento da pena a que podem ser condenados, agora de até três anos de prisão, seja pela imposição de tratamento e assistência psicológica.

Não podemos esquecer que toda situação de violência contra a mulher decorre da idéia patriarcal de ¿superioridade masculina¿, da cultura machista que desde os tempos coloniais imperou em nossa sociedade, da submissão da mulher aos padrões vigentes até a Segunda Grande Guerra. No entanto, com o aumento gradativo da participação feminina no mercado de trabalho, a elevação do seu nível de escolaridade, além da universalização dos conceitos de Direitos Humanos, aqueles costumes se mostraram anacrônicos.

É verdade que a lei precisará de algum tempo para ser aplicada em toda sua extensão, pois exige ferramentas ainda não disponíveis, como instituições sociais necessárias ao atendimento das famílias vitimadas e recursos para implantação e custeio do completo aparato legal preconizado.

A maior parte da implantação deverá ocorrer por transformação dos Juizados Especiais Criminais, cuja clientela, estima-se, já é 70% motivada pelos crimes de violência contra a mulher. Vários estados já optaram por adaptar a competência de algumas de suas Varas Criminais preexistentes, tornando-as especializadas para o manejo exclusivo da nova lei, que abriga aspectos cíveis e criminais ao mesmo tempo. A lei ainda proíbe a condenação a penas pecuniárias e ao simples pagamento de cestas básicas. Mas o mais importante nesta novidade legal longamente sonhada, fruto de uma concertação de órgãos governamentais e movimentos sociais, é a mudança de paradigmas que ela impõe.

Sabe-se que lares violentos promovem a desagregação da família, refletindo-se profundamente na psique de seus componentes, com resultados desastrosos para o comportamento de seus membros, especialmente quanto aos próprios núcleos familiares futuros. Está comprovada a repetição do comportamento doméstico apreendido em casa, tanto para agressores como para agredidas.

Sabe-se ainda que uma das principais razões da violência na sociedade é justamente a degradação das famílias, com a ausência da figura paterna somada à necessidade de subsistência que obriga ao trabalho diuturno de suas chefes-mulheres (30%, no Brasil), com o abandono das crianças à própria sorte, sem orientação e sem imposição de limites. Vale dizer, portanto, que a violência doméstica e familiar não é um problema exclusivo das mulheres; ele transcende a vítima e impõe à sociedade um ônus quase sempre desconsiderado e ainda pouco dimensionado.

O resultado imediato da aplicação integral da Lei Maria da Penha será o resgate da dignidade das ofendidas, não mais ¿comprável¿ por cestas básicas, através de uma resposta coercitiva mais rigorosa do Estado aos que teimam em não adaptar-se aos novos tempos. Os resultados a médio e longo prazos serão a interrupção do círculo vicioso da agressão doméstica e familiar e ainda a diminuição da violência urbana e rural pela imposição das novas regras, produzindo exemplos de cunho civilizatório.

Logo, logo, o Brasil vai reconhecer a imensa contribuição que a Lei Maria da Penha trará ao convívio da sociedade, estabelecendo novas formas de relacionamento homem/mulher, com reflexos significativos na busca pela almejada parceria harmoniosa e de respeito mútuo entre os sexos, gerando paz social.

CARMEN FONTENELLE é vice-presidente da OAB.