Título: Silêncios, sons e fúrias
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 22/10/2006, O GLOBO, p. 2

Vai terminando uma campanha eleitoral estranha, sem debate verdadeiro, quase sem política. Ruidosa sobre o acessório, silenciosa sobre o essencial. O candidato favorito chega a esta última semana com uma vantagem de 24 pontos percentuais (Ibope/votos válidos) sobre o adversário e com uma investigação criminal esbarrando em pessoas muito próximas. Perdendo o impulso, propiciou o segundo turno cometendo erros seguidos, a campanha adversária passou a depender do imponderável policial. A beligerância é alta e o debate é vazio, mas nunca houve também uma campanha com tamanha tranqüilidade econômica.

Este talvez seja um de seus poucos atributos positivos, juntamente com o vigor democrático, a absoluta liberdade de expressão e discussão em tantos e variados meios. A eficiência da votação eletrônica também merece um louvor.

Neste segundo turno, os dois candidatos tiveram à sua disposição, para a exposição de suas idéias e para o debate, uma profusão inédita de tribunas e canais. Ocuparam dez minutos diários no horário eleitoral e surfaram sofregamente na mídia livre: até aqui foram dezenas de entrevistas a jornais, revistas, emissoras de rádio e telejornais. Já participaram de dois debates e ainda haverá mais dois. Viraram arroz de festa, mas nem por isso o debate sobre as questões nacionais está sendo mais profundo ou menos dissimulado. De um lado, porque o elevado saldo de casos de corrupção no governo Lula pautou a campanha da oposição e o noticiário. Depois, porque ambos esconderam suas agendas, preferindo o refúgio eleitoralmente seguro das promessas fáceis. O nó cego, nenhum deles informou como desatará. Lula diz e repete que o país está pronto para crescer a taxas maiores. Alckmin navega entre o auto-elogio gerencial e a promessa de reduzir gastos e impostos. Apesar da miséria orçamentária, não disseram como vão atrair investimentos. Nada sobre a precariedade regulatória e jurídica.

Ambos esconderam a agenda na questão da Previdência. Lula admitiu, no programa ¿Roda Viva¿, a necessidade de outra reforma, mas prometendo negociá-la, sem entrar no conteúdo. Na entrevista ao GLOBO nem isso admitiu. Alckmin jura que não proporá uma idade mínima de aposentadoria. Não se ouviu proposta para a inclusão dos milhões de brasileiros sem-previdência. Por mais que haja formalização do emprego, ficarão sempre de fora os autônomos, os pequenos prestadores de serviço que hoje teriam de pagar sozinhos uma alíquota de 20%. Na sexta-feira, em entrevista à CBN, Alckmin foi mais longe, prometendo dar aos aposentados o aumento que Lula vetou (os 13% reais dados ao salário-mínimo, emenda demagógica da oposição) para manter apenas os 5% oferecidos. Fará isso quem quiser quebrar logo o sistema. O tempo todo eles cantaram as maravilhas que fizeram: Alckmin por São Paulo, que o Brasil todo inveja. Lula pelo Brasil, ¿como nunca antes de modo tão sólido¿.

Pautado pelo escândalo do dossiê, o segundo turno entra na reta final com a coligação tucano-pefelista suspirando por um novo estrépito, como aquele que empurrou a eleição para o segundo turno. Os governistas estão com a respiração curta, temendo uma bala de canhão. Na sexta-feira, foram revelados telefonemas entre Gilberto Carvalho, secretário particular do presidente, e o arquiteto da compra do dossiê, Jorge Lorenzetti. Foi no dia das prisões em São Paulo. Informado delas logo cedo, teria buscado inteirar-se do ocorrido, justificou ele. Falaram-se outra vez ao fim do dia. Tido como olhos e ouvidos de Lula, é razoável que Gilberto tenha feito isso. Lorenzetti ainda não havia sido detonado. A oposição já segurou-se nesta tábua, vai convocá-lo à CPI dos Sanguessugas. Já planejava gritar aos quatro ventos esta semana, desprezando as investigações, que o dinheiro era da campanha de Lula. Arriscado, mas nesta altura já lhe restam outros recursos. O Ibope mostrou na sexta-feira que Alckmin começou a encolher.

O que sobra de positivo nesta campanha do discurso raivoso ou grandiloqüente, da agenda oculta e das intenções dissimuladas é a tranqüilidade econômica. Os mercados sabem, pela experiência, que um segundo governo Lula não porá de lado a credibilidade conquistada, a fidelidade ao superávit apesar do gasto elevado inclusive com o social. Que Alckmin, se eleito, iria até além. Pairou sobre a campanha o consenso mudo sobre o tripé: metas de inflação, superávit e câmbio flutuante. Isso está incorporado, assim como a aposta na democracia. Ninguém teme retrocesso, apesar da retórica da oposição, de questionar o mandato de Lula se ele for reeleito. Em tudo o mais, uma campanha esquisita.