Título: ÍNDIA PREMIARÁ CASAMENTOS INTERCASTAS
Autor: Florencia Costa
Fonte: O Globo, 22/10/2006, O Mundo, p. 50

Governo pretende oferecer mil dólares para pessoa que romper tabus milenares do hinduísmo e casar com `inferior¿

BOMBAIM. Sushma, 23 anos, pagou caro por ter desobedecido a seus pais e à rígida lei do sistema de castas do hinduísmo. Em outubro de 2003, a moça da mais alta casta, a dos brâmanes, se casou com Prabhu Nochil, 23, um indiano da subcasta malayali, inferior à sua. A família da jovem, de um dos estados mais conservadores do país, Uttar Pradesh, no norte, não perdoou a ¿traição¿. Sete meses depois do casamento, quando Sushma já estava grávida, seu irmão Dilip e mais dois amigos entraram na casa deles de madrugada e mataram a facadas Prabhu, seu pai, Krishnam, seu primo de 13 anos, Bijith, e Abhayraj, um vizinho que abriu a porta. Os assassinos feriram ainda Indira, mãe de Prabhu, e a irmã do rapaz, Deepa. Sushma só escapou da carnificina porque não estava em casa. O pai da moça, Premnarayan, e a mãe, Tulsidevi, foram acusados de planejar o crime.

No início de setembro, os três assassinos foram condenados à morte na forca, mas os pais de Sushma acabaram sendo absolvidos por falta de provas. Foi um caso raro de justiça nos ¿crimes de honra¿, que ainda acontecem freqüentemente na Índia moderna. São chamados assim por serem cometidos pelos pais de uma das partes do casal, sob o argumento de ¿lavar a honra da família.¿ São tão comuns esses tipos de crime que na semana passada a Universidade de Bombaim e entidades da sociedade civil organizaram o seminário ¿Crimes de Honra no Sudeste Asiático¿.

Pais prendem filho em quarto por 11 anos

A intervenção dos pais contrários a casamentos que burlam a tradição do sistema de castas acontece de várias formas. No caso de Purushottam Sethi, hoje com 42 anos, seus pais o trancafiaram durante 11 anos num quarto minúsculo, no vilarejo de Chendipada, no estado de Orissa. Seu ¿crime¿ foi ter se apaixonado aos 31 anos e decidido se casar com uma moça de uma tribo indiana, muito abaixo de sua casta. Fraco e mentalmente perturbado, Purushottam foi libertado pela polícia em meados de setembro.

A dona de casa Pryanka Pendse, 29 anos, é casada há três anos com um homem de uma casta inferior à sua. Sofreu muita pressão da família para não se casar, mas ela insistiu e hoje tem um filho de 2 anos.

¿ Meu casamento foi por amor e não arranjado. Meus pais tentaram me convencer a não me casar, mas acabaram aceitando o fato com o tempo. Mas até hoje eles não me visitam. Eu é que tenho que ir na casa deles ¿ contou ela.

O governo indiano tenta apagar da sociedade as pragas, herdadas do milenar hinduísmo, que envergonham o país que tanto sucesso faz no cenário econômico mundial. Para tentar diminuir esse preconceito e encorajar os casamentos intercastas, o governo pretende oferecer um prêmio de mil dólares para a pessoa de casta alta que casar com outra de casta baixa. A idéia partiu da ministra da Justiça Social, Meira Kumar ¿ ela própria de uma casta baixa. O governo central pagaria metade desse dinheiro e os governos de cada estado bancariam o resto.

As autoridades de Nova Délhi estão conversando com governantes dos 28 estados e sete territórios para convencê-los a unificar esse valor e oferecer o incentivo. Alguns estados já dão esse tipo de prêmio, mas com valores inferiores. Por exemplo, os indianos de casta alta do estado de Bengala Ocidental ganham menos de US$50 do governo local se casarem com alguém situado na base da pirâmide hierárquica hindu. Já no estado de Gujarat ¿ berço de Mahatma Gandhi, uma das figuras que mais lutaram para acabar com a injustiça do sistema de castas ¿ o incentivo já é de US$1 mil.

Amor e casamento, união não natural no país

O amor, na tradição indiana, não é o motivo predominante para o casamento. Daí a prática, comum até hoje, do casamento arranjado. O amor romântico, dizem os que defendem essa prática, pode acontecer depois do casamento, durante o tempo de convivência do casal. Ainda é comum os pais escolherem os noivos de seus filhos. O critério de escolha está ligado às castas, classe social, educação, cor da pele e até o signo. Essa noção de casamento por casta está ligado ao conceito hindu de ¿pureza¿. Reações negativas às uniões intercastas acontecem nas famílias que acreditam que ficarão poluídas. As divisões de castas seguiam o critério de função dos indivíduos na sociedade e muitas vezes é possível saber a que casta pertence uma pessoa pelo sobrenome.

Além das quatro castas originais ¿ brâmanes (religiosos e intelectuais), ksatriyas (guerreiros e reis), vaisyas (fazendeiros e comerciantes) e sudras (trabalhadores braçais e serventes) há ainda os ¿sem-casta¿, conhecidos como intocáveis (por não poderem tocar nos demais para não ¿poluí-los¿), hoje chamados por um termo politicamente correto: dalit (oprimido). A eles cabia realizar trabalhos considerados impuros pelo hinduísmo, como mexer com cadáveres e limpar sanitários.

Com o tempo foram surgindo centenas de subcastas. Nos grandes centro urbanos, muitos indianos de castas baixas e até dalits ascenderam socialmente, principalmente após as reformas que impulsionaram a economia indiana no início dos anos 1990. Muitos indianos excluídos do sistema de castas abandonaram o hinduísmo e escolheram outras crenças, como a cristã, a budista e a muçulmana, para tentar se livrar da praga. Mas a classificação por castas acabou migrando para o catolicismo e o islamismo em várias regiões da Índia.