Título: A PERTINÊNCIA DA ONU
Autor: KIM BOLDUC
Fonte: O Globo, 23/10/2006, Opinião, p. 7

Os aniversários são sempre um momento propício para avaliações e balanços. Os 61 anos que neste mês completa a ONU oferecem um ponto de inflexão a partir do qual devemos analisar e projetar o trabalho da organização. O mundo atual apresenta características diferentes daquelas que marcaram a criação das Nações Unidas, em 1945. Os três principais desafios que se apresentavam à comunidade internacional naquela época continuam vigentes: os direitos humanos, o desenvolvimento e a segurança. Contudo, seria um erro não perceber que tais desafios tomaram formas distintas que demandam uma ação renovada.

Vejamos o que está acontecendo com os direitos humanos. Os progressos nesta área têm sido significativos. Numerosos direitos foram reconhecidos por meio de tratados internacionais; cada vez mais governos são escolhidos democraticamente; a Humanidade conseguiu julgar alguns daqueles que cometeram crimes contra ela; neste, assim como em outros processos, as Nações Unidas tiveram um papel determinante. Apesar de tais avanços, crimes constantes contra a lei são reportados diariamente; ataques contra indivíduos e minorias; guerras e genocídios obrigam-nos, como comunidade internacional, a responder a tais abusos de forma conjunta.

Na área econômica, o crescimento global tem experimentado um notável aumento, especificamente na região asiática. Tal melhora tem tirado milhões de pessoas da extrema pobreza. Mas esse crescimento não é compartilhado da mesma forma por toda a população do planeta. A desigualdade ¿ seja entre países ou dentro deles ¿ tem se constituído em um dos principais problemas mundiais do século XXI. O desenvolvimento humano não depende, exclusivamente, do crescimento econômico que, mesmo sendo necessário, não é suficiente para reduzir a pobreza, a enorme iniqüidade que separa pobres de ricos, negros e indígenas de brancos, homens de mulheres. É preciso aumentar as oportunidades e as capacidades das pessoas promovendo uma cidadania que desfrute de saúde, educação e emprego digno. Nesse mesmo sentido, podemos afirmar que é muito pouco provável que os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio sejam atingidos de forma plena em todo o mundo.

O desafio, aliás, se impõe a cada um dos países que avançaram na garantia dos direitos de milhares de seus cidadãos, mas deixaram para trás outros milhares. Em uma perspectiva de direitos humanos, para ser sustentável, o desenvolvimento precisa ser eqüitativo. Enquanto não chegarmos a cada ser humano, nossa agenda não estará cumprida. Acreditamos que a melhor forma de assumir o imperativo ético da comunidade internacional na luta contra a extrema pobreza e a desigualdade é através de uma organização como as Nações Unidas. A ONU tem capacidade operativa, experiência, presença internacional e legitimidade necessárias para assumir tal responsabilidade.

O terceiro desafio é relativo à segurança. O desenvolvimento dos povos só será possível quando as pessoas não estiverem ameaçadas pela violência e a guerra. Nesse sentido, as Nações Unidas têm representado um papel determinante na resolução de conflitos e na reconstrução de países em guerra. Apesar de uma importante diminuição dos conflitos internacionais, existem ainda situações que ameaçam a vida de milhares de pessoas no mundo. As pequenas armas são, em muitos países, um foco de conflito constante no dia-a-dia das comunidades. Por sua parte, o terrorismo internacional não apenas assassina mas cria desconfiança, medo e sentimento de insegurança, tal como acontece com as armas de destruição maciça. As ameaças atuais afetam de igual forma a todas e cada uma das pessoas do planeta, não importa onde elas se encontrem, seja em Nova York, no Iraque ou em qualquer cidade do Brasil.

Os problemas do século XXI, como a epidemia de HIV/Aids, os desafios ao meio ambiente ou as desigualdades sociais, entre outros, apresentam uma dimensão marcadamente global que obriga a adotar respostas também globais, acordadas e coordenadas no seio das instituições mais universais. As características das atuais relações internacionais determinam a existência de novos atores; as pessoas ¿ organizadas por meio da sociedade civil ¿, os governos e os denominados ¿atores não estatais¿ podem aportar uma contribuição vital para a melhora das condições de vida no mundo. Todos nós temos que assumir nosso papel na ordem mundial e uma ONU renovada deve estar no centro de tal interação multilateral. Como disse Kofi Annan ¿a única resposta para este mundo dividido devem ser as Nações verdadeiramente Unidas¿.

KIM BOLDUC é representante da ONU no Brasil.