Título: HUNGRIA REPRISA REBELIÃO
Autor:
Fonte: O Globo, 24/10/2006, O Mundo, p. 30

Comemoração de 50 anos do Levante Húngaro vira batalha entre manifestantes e polícia

BUDAPESTE

Ocheiro do gás lacrimogêneo, a quantidade de pessoas nas ruas e até a tomada de um tanque soviético pareciam uma repetição de cenas que haviam ocorrido exatamente 50 anos antes em Budapeste, mas os motivos por trás dos violentos choques que tomaram as ruas da capital da Hungria ontem mostram uma mudança profunda no país. No momento em que a nação relembrava o Levante Húngaro de 1956, no qual a população se uniu para exigir o fim do regime stalinista submisso a Moscou, a divisão política da Hungria de hoje entre a oposição de direita e o governo de ex-comunistas gerou cenas de pancadaria e protestos de dezenas de milhares de pessoas contra o primeiro-ministro Ferenc Gyurcsany.

Cerca de cem mil pessoas saíram às ruas ontem em diferentes manifestações. Se algumas delas foram apenas cerimônias cívicas para marcar a data, a maior parte era de opositores do governo. Em 17 de setembro, vazou para a imprensa um discurso em que o premier Gyurcsany disse que mentira sobre a economia do país. Desde então, há protestos diários na Hungria.

Oposição exige renúncia de premier

Em diversos pontos da cidade, grupos de extrema-direita tentaram entrar em locais que estavam isolados pela polícia para cerimônias oficiais, como a Praça Kossuth, em frente ao Parlamento. Os manifestantes atiraram pedras nos policiais, que responderam com balas de borracha, gás lacrimogêneo e jatos de água. Pelo menos 40 pessoas ficaram feridas, nenhuma delas com gravidade. Houve dezenas de prisões.

O momento mais espetacular dos choques foi quando manifestantes roubaram um tanque soviético T-34 ¿ que foi usado em 1956 contra os húngaros e que fazia parte de uma exposição sobre o Levante ¿ e avançaram com ele contra os policiais. O tanque estava desarmado.

¿ Toda a multidão começou a comemorar (quando o tanque foi guiado em direção à tropa de choque). A polícia começou a atirar gás lacrimogêneo. Só então o tanque parou ¿ descreveu o cinegrafista Fedja Grulovic.

Um manifestante, provavelmente um ex-militar, foi retirado do tanque por policiais.

Apesar de a polícia afirmar que só houve confrontos entre policiais e radicais, líderes do principal partido de oposição ao governo, o direitista Fidesz, acusaram as forças de segurança de atacarem manifestações pacíficas.

¿ A polícia cometeu atos brutais e usou de uma violência inexplicável contra pessoas pacíficas ¿ disse Tamas Deutsch-Fur, porta-voz do Fidesz.

À noite, o partido reuniu 40 mil pessoas no centro de Budapeste para exigir a renúncia do premier. Além do líder do Fidesz, Victor Orban, participou também do comício o presidente do Partido Popular Europeu, Wilfried Martens. A legenda reúne partidos de direita de todo o continente no Parlamento Europeu.

¿ Estou aqui porque temos que lutar contra este governo. Temos que destruí-lo ¿ disse Laszlo Toth, de 76 anos, que, 50 anos atrás, participou do Levante.

O premier Gyurcsany já afirmou que não deixará o poder. O seu Partido Socialista tem maioria no Parlamento e ele sobreviveu a um voto de desconfiança:

¿ Apesar do muitas vezes justificado descontentamento, a maioria dos húngaros acredita que a democracia parlamentar é a mais acertada para expressar a vontade do povo.

A divisão política do país não se refletiu apenas nas manifestações de rua. A sessão solene do Parlamento e a homenagem de chefes de Estado e de governo aos mártires do Levante Húngaro teve a ausência dos partidos de direita, que se recusam a participar de cerimônias em que Gyurcsany esteja presente.

Os representantes dos países depositaram coroas de flores no monumento aos mortos do Levante e divulgaram um documento chamado ¿Declaração da Liberdade 1956.¿

¿ Os heróis de 1956 lutaram por todos aqueles que na Europa e no mundo viviam sob ditaduras ¿ disse José Manuel Durão Barroso, presidente da Comissão Européia.

Muitos eleitores da direita afirmam que as homenagens ao Levante não poderiam ser comandadas pelos socialistas, já que eles são os herdeiros políticos do comunista Partido dos Trabalhadores Húngaros, contra o qual os jovens de 50 anos atrás lutaram. Alguns historiadores, no entanto, não concordam com esta versão, uma vez que, em grande parte, o movimento de 1956 foi realizado por reformistas de dentro do partido, como o líder do movimento, o primeiro-ministro Imre Nagy.