Título: A AMAZÔNIA NÃO ESTÁ À VENDA
Autor: PAULO ADARIO
Fonte: O Globo, 26/10/2006, Opinião, p. 7

Lamentavelmente ausente do debate político-eleitoral, a questão ambiental finalmente conseguiu algum espaço na mídia em meio às eleições. Foi preciso, no entanto, que o tema viesse de fora do país ¿ e travestido de ameaça à soberania nacional. Pelo menos é assim que foi recebida a proposta de ¿privatização¿ de grandes áreas da Amazônia para impedir que o desmatamento da região continue a aumentar o risco de mudanças climáticas em todo o mundo. O plano, que, segundo o jornal inglês ¿The Daily Telegraph¿, teria sido apresentado pelo ministro de Meio Ambiente britânico, David Miliband, em reunião no México, prevê a compra de grandes áreas da Amazônia para proteger a biodiversidade e o clima global.

A reação da imprensa brasileira foi imediata, o governo brasileiro se mexeu, Miliband desmentiu a história, e a honra nacional foi salva. Foi mesmo?

A idéia de recorrer à iniciativa internacional para impedir que a contínua destruição da Amazônia coloque todo o planeta em risco não é nova e, volta e meia, bate na trave da mídia, igual cobrança de falta do Ronaldinho Gaúcho.

A idéia é baseada num teorema simples: a gigantesca cobertura florestal da Amazônia tem papel fundamental no equilíbrio climático e no ciclo das chuvas. Se liberados para a atmosfera via desmatamento e queimadas, os bilhões de toneladas de gás carbônico estocados nas árvores amazônicas aumentarão o aquecimento global e colocarão todo o planeta em risco. O desmatamento transformou o Brasil no quarto maior poluidor do clima global. Como o Brasil e outros países da bacia amazônica, carentes de recursos, não conseguem ou não querem parar com a destruição da floresta, por que não criar um consórcio internacional que compre grandes áreas para preservação para conter a ameaça ao clima? CQD.

Há um pequeno problema nessa lógica: a Amazônia não está à venda ¿ é patrimônio de nove países sul-americanos, sendo que o pedaço do Brasil é o maior (60% do total). Algo como 33% da Amazônia brasileira são terras indígenas e áreas de proteção integral e uso sustentável. Por lei, não podem ser comercializadas. Há ainda uns 6% ocupados por assentamentos ¿ dor de cabeça na certa para um investidor estrangeiro. Outros 37% são de terras públicas da União, de estados e municípios. Por lei, vender terra pública acima de 2,5 mil hectares exige aprovação do Congresso. Não existe condição política para isso.

Sobram as áreas privadas, que corresponderiam a 24% do total da Amazônia, a grande maioria já desmatada (17% da Amazônia brasileira já foram para o espaço, dando lugar a pastagens, terras degradadas e campos de soja, e uma área pelo menos igual está severamente afetada pela exploração madeireira predatória). O que resta de florestas tidas como ¿privadas¿ está em terras griladas ou que têm sérios problemas de documentação. São mau negócio para o hipotético investidor em florestas, certeza de anos gastos em tribunais enquanto a farra da destruição corre solta na mata.

Embora seja fajuta, a tese de privatizar a Amazônia tem pelo menos um mérito: serve para alertar a sociedade brasileira para a urgente necessidade de acabar com o desmatamento, conter a indústria madeireira predatória e parar a expansão do agronegócio sobre as florestas da região. A expansão descontrolada dessas atividades resultou na destruição de uma área de floresta maior do que a França nas três últimas décadas. E, embora o ímpeto da taxa anual de desmatamento tenha diminuído nos últimos dois anos graças a medidas de governo e à crise do agronegócio, a derrubada das árvores da Amazônica continua escandalosa e alarmante.

Acabar com essa destruição exige políticas públicas consistentes e de longo prazo, e passa por uma mobilização nacional e internacional que inclua dinheiro na mesa para promover iniciativas de desenvolvimento responsável que beneficiem os 20 milhões de pessoas que moram na Amazônia, mas que mantenham a floresta de pé. Isso inclui uma revisão de prioridades no orçamento federal, com mais recursos para a criação e implementação de áreas protegidas e de uso sustentável, além do fortalecimento de instituições encarregadas de zelar pela floresta ¿ como Ibama, Polícia Federal, Funai, Incra etc. Afinal, preservação está diretamente ligada a governança.

Enquanto os governos federal, estaduais e municipais, a iniciativa privada que destrói a floresta em nome de um pretenso desenvolvimento econômico e os consumidores nacionais e internacionais ávidos por soja, carne e madeira não fizerem sua parte de forma a desarmar a bomba do desmatamento, o pânico mundial quanto às mudanças climáticas tende a aumentar a pressão internacional sobre o Brasil, reduzindo cada vez mais o poder de negociação do país na arena global.

Há muito o que fazer, e o tempo joga contra a Amazônia e o planeta.

Mãos à obra, senhores.

PAULO ADARIO é coordenador da Campanha Amazônia do Greenpeace.