Título: Tarefas do ganhador
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 28/10/2006, O GLOBO, p. 2

Chega ao fim esta longa campanha eleitoral, que começou na prática há 18 meses, quando Roberto Jefferson detonou o governo e o PT denunciando o mensalão. A oposição apostou no prolongamento da crise e na sangria eleitoral de Lula. O PT colaborou ao máximo, produzindo escândalos em série. Se for reeleito, mais que qualquer outro, Lula terá de fazer o melhor possível com a vitória.

Honrar o voto e a confiança popular é dever do ganhador sempre, seja quem for ele amanhã. Mas as pesquisas apontam uma grande vantagem para o presidente Lula, e as circunstâncias de sua sobrevivência o tornam particularmente devedor.

Os brasileiros aprenderam muito nesta campanha. Viram um governo nascido da esperança de mudança cair no descrédito, no desvão da corrupção e dos desmandos políticos do partido governante. Sofreram a dor do desencanto. Acompanharam longas sessões de CPIs em tempo real, com depoimentos patéticos. Foram informados de flagrantes bizarros, como o dos dólares na cueca. Viram a ascensão e queda, em poucos meses, de um presidente da Câmara chamado Severino. Viram o plenário absolver acusados que o Conselho de Ética e a opinião pública condenaram. Viram ministros cair como frutas podres e o presidente declarar-se traído seguidas vezes. Apesar de tudo, a partir de janeiro passado, segundo as pesquisas, voltaram a aprovar o governo e a declarar a intenção de reeleger o presidente.

Muito se escreveu, com frustração ou preconceito, sobre uma suposta leniência brasileira com a corrupção. Houve até uma pesquisa sustentando que os mais pobres, os mais negros e os menos escolarizados têm menor exigência ética que os mais ricos, brancos e cultos. O eleitorado voltou a Lula não por complacência nem por causa de seu carisma, que não evitou suas três derrotas. Pesquisas qualitativas captaram uma outra razão. Nelas, os grupos de discussão diziam não aprovar as transgressões petistas, mas diziam, também, que elas não eram inaugurais na política brasileira. Diziam também não acreditar que se tratava do ¿maior esquema de corrupção do mundo¿ nem na santidade da oposição. Acabou prevalecendo, no julgamento, o desempenho do governo sobre seu déficit ético, que continua existindo. O escândalo do dossiê antitucano forçou o segundo turno, mas o favoritismo de Lula foi restabelecido.

A candidatura do tucano Geraldo Alckmin enfrentou tremendas adversidades. Do racha interno inicial no PSDB à falta de um programa claro, passando pela descrença dos aliados no perfil do candidato. A ida para o segundo turno foi uma demonstração de força e viabilidade, logo neutralizada por erros subseqüentes e pela dificuldade natural da disputa com um presidente mítico e bem avaliado, apesar dos problemas éticos. Eleito, seus desafios não seriam menores.

Se Lula ganhar por uma boa margem de votos ¿ 60% contra 40% do concorrente, por exemplo ¿ terá mais força para recomeçar. A vantagem estreita reduz os benefícios da vitória, mas não suprime os deveres do ganhador. E, por tudo o que se passou, Lula tem dívida muito maior.

O primeiro dever do ganhador é conter a soberba e ser generoso com os derrotados, estender a mão em gesto de conciliação política, não de cooptação ou anulação das diferenças, mas de busca das convergências possíveis no que interessa ao país, não ao governo. Quem ganha é que deve buscar o diálogo.

Se ele for Lula, terá o dever imperioso de garantir o esclarecimento do caso do dossiê e de outras pendências. As investigações estão a cargo da Polícia Federal e da CPI dos Sanguessugas, mas o presidente e o PT devem garantir a independência delas e a punição dos culpados. Reformar o PT, eliminando seus nichos de inadequação democrática, é outra dívida de Lula.

¿ Com ou sem vitória, o PT terá de passar por uma profunda reforma de concepção e método. A meu ver, inclusive, deve passar a ser dirigido por pessoas comprometidas com a institucionalidade, os que têm voto e aprovação da sociedade. Esses resquícios de partido clandestino e conspirador têm que acabar para sempre ¿ diz o prefeito petista de Belo Horizonte, Fernando Pimentel. A ver.

Se reeleito, para desfrutar de estabilidade política Lula terá que montar um governo de perfeita simetria com suas forças de apoio no Congresso e, ao mesmo tempo, zelar pela eficiência. Terá que valorizar o PMDB como aliado, mas impedir que o partido aparelhe estatais e ministérios, negligenciando as contas públicas, como é de sua cultura.

A base parlamentar em 2007 será melhor que a de 2002. Com o PT, o PMDB, o PCdoB e o PSB, Lula pode ter maioria garantida. E o PDT já discute sua volta à coalizão. Mas não será mais possível, a nenhum presidente, governar o Brasil com base na velha barganha Executivo-Congresso instituída após a redemocratização. Sem falar nas promessas, que vão da reforma política ao maior crescimento.