Título: DIANTE DE UM TÚMULO
Autor: D. EUGENIO SALES
Fonte: O Globo, 28/10/2006, Opinião, p. 7

Operegrino que chega a Roma, em busca de alimento espiritual e fortalecimento da fé, inclui, comumente, uma visita às catacumbas. São cemitérios subterrâneos e, por vezes, serviam como lugares de refúgio para os cristãos perseguidos. Lá encontravam abrigo os falecidos de morte natural e os que davam a vida em testemunho da fé. Nesses longos túneis, em terreno que se abre em algumas salas maiores, os primeiros cristãos celebravam o culto divino. Em toda a parte há um hino ao sacrifício por amor a Deus, um grito de esperança na vitória final, a glorificação de heróis, estímulo à fidelidade ao Mestre e à Sua Igreja. As catacumbas de Roma foram assim utilizadas até o tempo da liberdade concedida por Constantino. A mais antiga data do século III, tendo sido adquirida uma gleba pelo Papa Zeferino, e doada à Igreja. Como a administração do cemitério coube ao então diácono e, depois, Papa Calixto, daí o nome ¿Catacumbas de São Calixto¿. Foi a partir do século IX que receberam a denominação de ¿catacumbas¿. Percorrer esse emaranhado de escavações, que se estendem em andares superpostos, por quilômetros e quilômetros, em várias áreas de Roma, principalmente nas imediações da Via Appia e da Via Ardeatina, é reviver um passado que fala significativamente ao presente e ao futuro eterno.

Há um grande valor nessa celebração. Dá-nos a dimensão real da vida. Esta, que é transitória na terra, prolonga-se na imortalidade. Essas duas fases de nossa existência sugerem ao cristão a procura de um correto aproveitamento da primeira, no tempo, a fim de poder receber, na eternidade, os seus frutos. Tal reflexão, comumente rejeitada no decorrer dos anos, vem-nos instintivamente no Dia de Finados e ao assistirmos funerais, sejam enterros, sejam missas exequiais.

A então Pastoral da Esperança é hoje denominada Ministério da Consolação e da Esperança, com mais de 700 agentes ¿ religiosos e leigos ¿ que, devidamente preparados, desejam ser a presença da Igreja nos cemitérios do Rio de Janeiro. De 1990 a 2000, os ministros da Consolação e Esperança realizaram 278.474 encomendações. De 2001 a 2005, o total foi de 141.987 exéquias. Nesses números não estão incluídas as inúmeras encomendações e missas feitas pelos sacerdotes.

Outro aspecto que se relaciona com esse assunto é o tempo que medeia entre a morte e o sepultamento. Já em 1861, o decreto 2.912 proibia enterros com menos de 24 horas, salvo casos especiais, como os de epidemia. Essa prescrição foi atualizada pelo decreto municipal nº 3.707, de 6 de fevereiro de 1970. A publicação foi feita no Diário Oficial da então Guanabara, de 11 de fevereiro seguinte. O art. 108 assim reza: ¿Os sepultamentos não poderão ser feitos antes de 24 (vinte e quatro) horas do momento do falecimento¿, salvo caso de moléstia contagiosa, epidemia ou sinais inequívocos de putrefação. E desce ao pormenor: se a morte se der às 8 da noite de um dia, o enterro será, o mais tardar, às 8 da manhã do terceiro dia.

No entanto, verifica-se que, nem sempre, infelizmente, essa cautela é observada. Por vezes, o intervalo entre o óbito e o sepultamento é reduzido. Consta, de maneira insofismável, a existência da morte aparente. Há uma literatura nessa matéria que pede ser recordada: por um dever de justiça, há necessidade de um espaço de tempo prudencial para evitar a possibilidade de sepultamento de pessoas ainda vivas. Não desço a provas comprobatórias, mas cumpro o dever de pastor, alertando os fiéis neste Dia de Finados sobre essa obrigação da caridade, que é também cumprimento de uma lei. Há diversos estudos que abordam tal assunto. À pressa, marca de nossa época, e a outros problemas decorrentes de uma infra-estrutura insuficiente para atender de maneira digna aos sepultamentos, vem somar-se a fuga de uma profunda reflexão sobre a influência da morte em nossa conduta. Diante de um cadáver, salutares pensamentos nos vêm naturalmente.

Essas recomendações pastorais por ocasião do Dia de Finados e a visita aos túmulos dos entes queridos nos fazem lembrar que a vida não é destruída pela morte, mas esta é vencida e transformada, a partir da Ressurreição do Senhor. Assim, ao acender uma vela, sentimos que ela significa a luz de Cristo. Essas lições são valiosas no momento que passa; são, igualmente, um testemunho eloqüente da transitoriedade do mundo em que vivemos e naturalmente nos levam a ancorar nossas esperanças na eternidade. São Paulo bem resume essas idéias (1Cor 15,57): ¿Graças sejam dadas a Deus, que nos dá a vitória eterna por Nosso Senhor Jesus Cristo.¿

Na oração silenciosa diante de um túmulo, não nos esqueçamos que, também nós, um dia estaremos na Casa do Pai.

D. EUGENIO SALES é cardeal-arcebispo emérito da Arquidiocese do Rio.

Nas catacumbas de Roma, o passado fala ao presente e ao futuro eterno