Título: Viva o voto
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 29/10/2006, O GLOBO, p. 2

Os brasileiros voltam às urnas hoje pela oitava vez, 22 anos depois que foram às ruas exigir o direito de votar para presidente. Em cinco eleições, três foram decididas em segundo turno. Três presidentes foram consagrados, um foi reeleito em 1998, outro tenta o mesmo hoje. O mais duradouro período democrático da história republicana exige reverência à vontade popular.

¿Eleição a gente respeita. O povo decidiu, está decidido. Isso não quer dizer que os erros não tenham que ser punidos¿, disse na quinta-feira o ex-presidente Fernando Henrique. Mas outros líderes da oposição já expressaram, através da ação de impugnação da candidatura Lula, que transcorre no TSE, a intenção de questionar o resultado das urnas, se elas derem hoje a vitória ao presidente. Finda a disputa, a febre baixa, mas ainda há vozes dissonantes na oposição.

Quando a vontade popular é substituída pela das vanguardas politizadas, ainda que tenham a seu lado as mais fortes razões, está se quebrando a mola da democracia. Lula, Alckmin, Fernando Henrique e outros nomes da oposição são herdeiros da democracia, lutaram contra o arbítrio que entre 1960 e 1989 privou os brasileiros do direito de escolher seu governante maior. No período anterior, a redemocratização iniciada em 1945, um presidente eleito enfrentou dificuldades para tomar posse, um se matou, outro renunciou, um vice foi empossado dentro de uma crise e acabou deposto. Os anos 50 foram a infância traumática da democracia.

O voto legitima, mas não suprime o saldo de denúncias de corrupção e desmandos políticos cometidos por figuras do governo e do PT. Não anistia os que também tentaram subverter a vontade popular comprando um dossiê contra o tucano José Serra durante a disputa ao governo paulista. Se Lula for reeleito, tem este alto passivo a liquidar.

Mas um dos equívocos da oposição nesta campanha pode ter sido exatamente o de tentar fazer dela o julgamento moral do presidente e de seu partido. No auge da crise de 2005, quando decidiu não pedir o impeachment de Lula, a oposição optou também por transferir para a campanha eleitoral o acerto de contas e o julgamento dos que fizeram o caixa dois, o valerioduto, o mensalão e outros delitos. Optou pelo julgamento moral, mas o povo preferiu, segundo as pesquisas, o julgamento administrativo do governo Lula, deixando para os foros institucionais o julgamento dos delitos. Evidência disso, a similaridade entre os altos índices de aprovação do governo e as intenções de voto no presidente.

Esta campanha ensina que não se deve confundir as formas e instâncias de julgamento. Os eleitores optaram por julgar o governo de Lula, seus atributos positivos ou negativos, não os delitos de seus integrantes. Quem pode condenar, com os instrumentos de que dispõe, é a Justiça. Quem faz impeachment, com a prerrogativa que lhe confere a Constituição, é o Congresso.

A fala de FH, com a autoridade que ele tem sobre a oposição, ajudará a isolar os que desejam um acerto de contas no tapete do TSE. À frente, o presidente do PSDB, Tasso Jereissati, e o do PFL, Jorge Bornhausen. Os governadores eleitos Aécio Neves e José Serra nunca endossaram isso. Se Alckmin perder hoje, deve alinhar-se a estes. Mas, em dia de eleição, esconjure-se qualquer praga contra o voto popular.

Lula e Alckmin

Eles são diferentes, obviamente, mas, além de projetos semelhantes na essência, têm em comum a persistência com que se fizeram candidatos e chegaram até aqui.

Geraldo Alckmin, perdendo ou ganhando, sai da disputa maior do que entrou. Teve mais votos que lhe davam os institutos no primeiro turno. Provou aos céticos de sua coligação que tinha as credenciais para a disputa. Saiu desconhecido da redoma paulista para ganhar em 11 estados. Apelidado ¿chuchu¿, mostrou dureza e agressividade na disputa. Quando virou candidato, não tinha equipe nem plano de governo. Seu voluntarismo garantiu a candidatura, mas a demora na decisão exigiu improvisações constantes em sua campanha. Agora, para todos os efeitos, ele é uma carta alta no baralho da oposição, e terá voz ativa na definição da linha a ser adotada em relação ao governo Lula-II, se este for mesmo reeleito.

A candidatura de Lula, por outras razões, foi produto de sua própria tenacidade política. Quando a crise o derrubou, o PT não tinha, como não tem, outro candidato a presidente. Houve o momento em que o partido descreu até das chances de ele ser candidato. O navio de seu governo naufragou em alto-mar em 2005, muitos de seus principais timoneiros morreram afogados pelas denúncias. Juntando os destroços da embarcação, Lula nadou em busca da praia, fugindo de tubarões vorazes. Seu momento de maior fraqueza, a declaração de que não iria se matar nem renunciar, foi também seu momento de maior força. Se reeleito, deverá a vitória aos eleitores que lhe ofereceram uma segunda chance, apesar do naufrágio ético. E à própria estrela, ao forte instinto político, muito mais que ao PT ou a qualquer outro partido ou aliado político.