Título: LULA TENTA TIRAR DAS URNAS A IMUNIDADE NO PODER
Autor: José Casado
Fonte: O Globo, 29/10/2006, O País, p. 9

Presidente-candidato aposta em vitória expressiva para garantir legitimidade em eventual embate político-judicial

Osol queima e o suor escorre pelas têmporas, mas Esmeralda Costa, 65 anos, persiste. Foi das primeiras a chegar. Limpou a casa cedo, ajeitou a manga de um vestido quase novo (¿confecção própria¿, informa), prendeu o cabelo avermelhado, mas branco na raiz, e desceu até a principal rua de Cidade Tiradentes, bairro pobre da zona leste de São Paulo.

Conseguiu um lugar de frente para o caminhão. Lá em cima, o presidente-candidato parece preocupado com a quantidade de fios elétricos entrelaçados pouco acima da sua cabeça. Lula nem escuta a ex-prefeita Marta Suplicy.

Ela já está em campanha para voltar à prefeitura paulistana, em 2008. Nasceu rica, tem sobrenome quatrocentão (Smith de Vasconcelos), mas seus gritos amplificados contra ¿as elites¿ fazem vibrar a placa da ¿1000tão Autopeças¿, que racha uma parede pintada com o nome do diretório do Partido dos Trabalhadores ¿ única evidência do PT no comício.

¿Elites¿ é um vocábulo ao gosto do candidato Lula, que usa para designar todos os seus adversários. Não importa se parte deles tenha patrimônio inferior ao seu (R$839 mil declarados). Curvado, ele apela por uma vitória ¿expressiva¿:

¿ Eu preciso do voto de vocês contra essa elite... Eles dizem que dividi o país entre ricos e pobres. Eu, não! Eu sou pobre e vou continuar governando para vocês.

Segue um roteiro não-escrito: para Lula é crucial ampliar a vantagem esboçada nas pesquisas. Acredita que, quanto maior a vitória nas urnas, maior tende a ser sua ¿legitimidade¿. Ou ¿imunidade¿ em um eventual embate político-judicial ¿ caso o episódio ¿aloprado¿ da compra do dossiê contra tucanos acabe vinculado à sua campanha. Essa lógica eleitoral permeia seu desempenho.

¿ Eles é que dividiram o país ¿ continua, enfático. ¿ Essa elite é que só dá valor a pobre em época de eleição. Aí, eles gostam. Aí, pobre vale mais que banqueiro.

¿ Ah, esse homem precisa ajudar a gente! ¿ suspira Esmeralda, enquanto protege a cabeça com um panfleto do Partido Comunista do Brasil. A capa estampa em letras garrafais: ¿Lula governa para o povo¿. A contracapa afirma: ¿O tal choque de gestão de Alckmin é o que fez FHC: cortou verbas da saúde e da educação; incentivou a privatização do ensino; congelou o salário dos funcionários públicos¿.

No palanque, Lula insiste:

¿ Vamos dar a eles uma grande resposta nas urnas.

Esmeralda aplaude:

¿ Sou malufista e nunca gostei do PT. Mas votei nele. Espero que dê um jeito na saúde e nos coreanos.

Papel na mão, Lula comenta:

¿ Parece que o hospital e a escola técnica de saúde daqui não estão funcionando direito. Vamos consertar isso...

¿ É isso mesmo ¿ grita Esmeralda.

E explica ao recém-chegado:

¿ O hospital daqui está pronto, mas fechado. Em junho, precisei de um ortopedista. Tive que andar mais de uma hora de ônibus, até o posto do Glicério. Sabe quando mandaram voltar? Em dezembro!

Pedem que se cale. Mas o vizinho de platéia quer entender:

¿ E o que os coreanos têm a ver com isso?

¿ O senhor não entendeu. É que eu sou costureira... ¿ diz, com orgulho.

Cidade Tiradentes abriga uma centena de costureiras. Competem no mercado de roupas baratas com os bolivianos, que incham as favelas ao redor do comício. Imigrantes sem documentos, eles garantem a comida com cerca de R$150 mensais em jornadas de até 10 horas ao dia para confecções de imigrantes coreanos.

¿ Os coreanos trazem tecido importado, barato mesmo. Não trabalham com gente negra e preferem os bolivianos, que aceitam qualquer dinheiro. Aí, fica difícil...

Lula encurta o discurso. Vai falar pouco, desculpa-se, porque precisa se preservar para os debates na televisão. Ignora o lamento coletivo:

¿ Eu quero continuar trabalhando é para vocês, para garantir a comida mais barata na mesa de vocês...

Sua voz desaparece ao som crescente do forró-tema da campanha (¿Deixa o homem trabalhar/ Tá tudo andando direitinho...¿). O candidato acena. Esmeralda retribui. Lamenta não tê-lo ouvido falar dos coreanos, mas aposta que acontecerá no comício seguinte, na Capela do Socorro. Talvez vá até lá, avisa.

Três noites depois, na Capela, Lula é abraçado pelo cantor Netinho de Paula, que há tempos pleiteia um canal de televisão:

¿ Ele é do gueto. É mano. O outro é playboy ¿ diz o cantor.

O candidato segue o roteiro:

¿ Hoje, recebi catadores de papel no Palácio do Planalto. Vocês sabem, um palácio é construído para ter reis, príncipes e presidentes desfilando... Nós levamos os pobres para o palácio!

A platéia aplaude.

¿ Eles dizem que só falo para pobre e de pobres. Mas é preciso ficar claro que aquele palácio é do povo e a maioria do povo é pobre.

¿Olê, olé, olá...¿, começa um coro.

¿ Sabem qual foi a melhor notícia que tive hoje? ¿ prossegue. ¿ Foi uma pesquisa com ótima avaliação do governo, a melhor em 15 anos. Nem imaginam a satisfação, depois de quatro anos apanhando da imprensa brasileira. Eu quero é ver se algum outro presidente vai conseguir isso.

Lembra dos aposentados (na região há um expressivo contingente) e faz uma promessa, para alegria geral ¿ um novo empenho na Previdência, para desgosto dos economistas:

¿ O salário mínimo vai continuar aumentando, aumentando e aumentando, até recuperar todo seu poder aquisitivo.

Volta às ¿elites¿. O espectro do caso do dossiê persegue o presidente-candidato. Enxuga o rosto com uma toalha branca e ataca:

¿ Eles diziam: ¿Ah, o Lula tem que sangrar, não pode ganhar no primeiro turno¿. Mas esse segundo turno está sendo muito bom, uma grande surpresa para eles. Podia ter ganhado no primeiro turno. Podia, sim. Mas vocês sabem por que não ganhei. Humildemente, reconheço que nós erramos. Humildemente, reconheço que nós fizemos coisas erradas. Mas agora é hora de mostrar para eles. Vão lá, nas urnas para dizer com o voto, gritar no ouvido deles: ¿Deixa o homem trabalhar!¿

O primeiro governo Lula está no fim. O candidato tenta extrair das urnas algo mais do que a continuidade no poder: quer vencer com uma grande diferença de votos, acreditando que, assim, terá forças para o embate seguinte ¿ a luta pela sobrevivência no novo mandato, se ela se fizer necessária.