Título: Vale tudo para conquistar o poder. Estamos vivendo o império do vale-tudo
Autor: Fellipe Awi
Fonte: O Globo, 29/10/2006, O País, p. 18

Mesmo sabendo que a discussão sobre ética na política vem desde a Grécia antiga, o antropólogo Gilberto Velho não vê momento mais atual para discuti-la. Quase como num desabafo, ele parte da provável reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apesar das denúncias de corrupção, para mostrar como esta ética pode assumir variadas facetas, como a que valoriza a prioridade para os pobres ou a que acredita que os fins justificam os meios. Mas sua maior preocupação é a ¿truculência¿ com que governo e oposição travaram o debate eleitoral, que, segundo ele, ameaça a democracia e a governabilidade do próximo presidente, seja ele quem for.

A oposição apostou as fichas nas denúncias de corrupção no governo Lula e, segundo as pesquisas, vai perder a eleição. O discurso de defesa da ética não colou?

GILBERTO VELHO: Não sei. Há diferentes concepções de ética. Talvez o conceito de ética a que nós, de classe média, estamos acostumados não tenha sido eficaz. Para entender porque as denúncias não impressionaram, é preciso partir da idéia de alguns segmentos de que todo político é corrupto. O que eles entendem é que, se há corrupções no governo Lula, há também compensações, como o Bolsa Família. E tem a figura do Lula, que é indiscutível, embora até há alguns anos as chamadas camadas populares não admitissem ter um representante deles como presidente. Agora, identificam-se com Lula e acham que este é um governo mais interessado neles. É uma outra concepção de ética, a que valoriza quem está priorizando os pobres. Temos que reavaliar nossa visão de ética, há mais de uma ética em jogo.

Ou seja, se todo mundo é desonesto, vamos ver outras avaliações.

VELHO: Exatamente. A corrupção do governo Lula não impressiona mais que outras.

Essa concepção não foi incorporada por uma boa parte da elite e da classe média que declarou voto em Lula?

VELHO: Mas é outro tipo de ética. Esta está ligada ao chamado realismo político, que acha que os fins justificam os meios, que golpes e manobras são justificáveis em nome de uma causa. É uma ética pequeno-burguesa. Obviamente, não concordo com isso.

Qual a sua visão sobre a questão?

VELHO: Precisamos de acordos mínimos entre diferentes concepções de mundo, inclusive sobre ética. Por exemplo: não pode roubar o dinheiro público. Há regras que devem ser cumpridas. Estamos vivendo uma fase de transição. Tanto do lado do PT como da oposição houve a utilização de métodos truculentos na campanha. O Alckmin foi mais do que criticado pela atuação dele no debate da TV Bandeirantes e o Lula foi sistematicamente muito desrespeitoso com o Fernando Henrique. Assim como não se pode desrespeitar o Lula, o, o Lula e seus seguidores não podem destratar o Fernando Henrique. É uma questão de ética.

Qual a conseqüência dessa falta de discussão sobre ética na sociedade?

VELHO: A democracia no Brasil está muito fragilizada. Existe um populismo vigoroso. Somam-se a isso a questão do realismo político e uma grande desconfiança em relação à sinceridade dos que criticam a falta de ética. Boa parte dos que reclamam da falta de ética também está metida com esquema duvidosos. Quando você vê o Lula beijando a mão do Jader Barbalho, Newton Cardoso, ou quando o Alckmin estabelece aliança com o Garotinho, as pessoas perguntam: que ética é essa? Vale tudo para conquistar o poder. É com dossiê, mentiras, grosseria. Estamos vivendo o império do vale tudo.

Teme pela governabilidade?

VELHO: Temo pela governabilidade do Brasil. Teria de haver alguma aproximação entre setores civilizados, para usar uma palavra que antropólogo não gosta. Precisa de civilidade, respeito pela República. Sou parlamentarista. Com um primeiro-ministro, você tem melhor a distinção de Estado e governo. O Estado permanece. Os governos podem mudar. O serviço público não pode ser desmantelado a cada governo.

O governo Lula é muito acusado de misturar Estado e governo.

VELHO: Foi um dos piores erros. Partidarizaram setores importantes do Estado. Se você tem ética pública, aí é possível chegar a alguma coisa. O Lula provavelmente vai ganhar e seria importante que o PT reveja seus métodos e a oposição apresente seu lado mais construtivo e propenso ao diálogo. Sou um social-democrata um pouco frustrado. Houve um momento em que achei possível unir setores do PT e do PSDB. Hoje isso está muito difícil, mas seria bom, em nome da social-democracia, da construção de uma ética pública que não seja vista como engodo ou como coisa secundária. Agora é o vale-tudo da luta pelo poder, sem escrúpulos.

Discutiu-se muito pouco programa de governo.

VELHO: As pessoas só se atacaram. Qual foi a proposta séria sobre meio ambiente, segurança pública? A questão do dossiê é gravíssima, mas a oposição teve momentos de grande agressividade e não ofereceu nada. O que distingue um projeto do outro?

Se a oposição fosse menos truculenta a eleição estaria mais equilibrada?

VELHO: Lula era o favorito desde o início. O que preocupa é a possibilidade de o Brasil ser governável com tanta briga, com uso de métodos tão vis. Temos que encontrar lideranças para agregar pessoas de bem. Expressão antiga, né? Tem que achar gente que esteja pensando na construção de uma democracia e não só colada à luta pelo poder de um jeito mais vulgar. E a ética no Brasil tem que estar muito próxima da discussão de justiça social.