Título: NASCE UMA ESTRELA POLÍTICA
Autor: Dorrit Harazim
Fonte: O Globo, 29/10/2006, O Mundo, p. 54

Barack Obama desponta como candidato democrata à Presidência e lança sombra sobre Hillary

Foi como o deslocamento de uma placa tectônica. Há uma semana, a admissão feita pelo senador americano Barack Obama de que talvez, muito talvez, decida concorrer à Casa Branca já na próxima eleição de 2008, desestabilizou por completo o mapa político dos EUA. Primeiro, porque democratas e republicanos estavam totalmente focados na eleição do próximo dia 7, que irá renovar a Câmara dos Representantes e um terço do Senado, e ninguém esperava ser chacoalhado antes disso. Depois, e sobretudo, porque o aceno foi feito por alguém que possui um atributo tão devastador quanto ausente em qualquer de seus possíveis adversários: Obama parece ter nascido para ser eleito presidente dos EUA.

A dúvida é se o jovem senador negro de 45 anos não estaria atropelando seu próprio estilo, sendo sôfrego. Como não parecer arrogante ao pretender disputar a Presidência tendo como experiência apenas dois mandados na legislatura estadual de Illinois e metade de um primeiro mandato de senador? Biografia acanhada se comparada à extensa bagagem e familiaridade com o poder de sua maior adversária, a senadora Hillary Clinton. ¿Não tenho certeza de que alguém esteja realmente preparado para ser presidente antes de ser presidente¿, rebate Obama.

Senador fez viagem ao próprio passado

Sem folha corrida convencional de presidenciável, Obama enfeitiça a nação americana através de atributos tão singulares quanto pessoais. Ao contrário de Hillary, que tem um dos índices de rejeição mais altos pela aspereza de estilo, rispidez na fala, ambição explícita e fama de manipuladora, Obama trafega em qualquer ambiente sem se transvestir. Nunca pontifica ou soa afetado. Desde que eletrizou a Convenção do Partido Democrata em 2004 com um discurso que nenhum marqueteiro seria capaz de produzir, Obama divide suas dúvidas interiores com uma nação cansada de políticos embrulhados como mercadorias. Ademais, após 16 anos de governos que polarizaram a vida nacional, o eleitor americano respira aliviado diante de um político que não excomunga o adversário.

Para a mídia, por enquanto, Obama tem sido um bálsamo. Posou para as revistas ¿Vanity Fair¿ e ¿GQ¿ com uma elegância casual de matar de inveja alguém como Hillary, cujo estilo tem a estridência de quem ainda não se encontrou. ¿Ele tem qualidade de estrela¿, define Annie Leibovitz, a fotógrafa dos poderosos. Nenhum candidato personifica de forma tão visível a interseção da política com a cultura da celebridade. Disputado por entrevistadores como Larry King e Oprah Winfrey, o senador recebe uma média de 300 convites por semana. ¿Ele precisa decidir se quer ser uma celebridade ou um homem da história, se é que essa diferença ainda existe¿, adverte a colunista do ¿New York Times¿, Maureen Dowd.

Obama nasceu em 1961, ano em que tomava posse o último presidente dos EUA a enfeitiçar o país ¿ John Kennedy. ¿Sim, na juventude fumei maconha e traguei. A idéia, na época, era fazer isso, ou não?¿, disse com naturalidade em encontro recente da American Society of Magazine Editors, apinhada de editores das maiores revistas dos EUA. No seu primeiro livro de memórias, ¿Sonhos com meu pai¿ (95), que ficou 57 semanas na lista dos mais vendidos, Obama já havia abordado suas experimentações de juventude , inclusive com cocaína. ¿Não tentei heroína porque o vendedor era esquisito¿, escreveu, abortando a armadilha que levou Bill Clinton, candidato em 92, a se enroscar no célebre ¿fumei, mas não traguei¿.

Nenhum político americano de expressão nacional empreendeu uma viagem interior tão metódica quanto Obama em busca de respostas para se definir como indivíduo. Em cápsulas, o essencial de sua singular trajetória: a mãe, Ann Dunham, de família branca do Kansas, muda-se para o Havaí quando jovem; na universidade, conhece um jovem negro e muçulmano, do Quênia, Barack Hussein Obama; casam, têm o filho Barack, que a mãe chama de Barry, e se separam; o pai vai fazer doutorado na Universidade de Harvard e retorna ao Quênia; o filho só o viu uma vez mais, aos 10 anos; a mãe casa com um indonésio e o menino Barack vai morar três anos em Jacarta antes de ser redespachado para a casa dos avós, no Havaí. Passou a adolescência em conflito com suas origens e pensou ter perdido as raízes africanas quando da morte do pai.

Tudo mudou ao receber a visita de uma meia-irmã queniana, que o convenceu a fazer o caminho inverso. Ainda anônimo, Barry empreendeu a primeira viagem ao vilarejo do pai em 92. Em agosto passado, já senador, retornou a esse pedaço de sua identidade. Hoje, Obama é resultado de sua vivência multicultural, multirracial e multirreligiosa. É americano e negro, mas não afro-americano. Sua negritude não vem da América escrava.

Em mais de 200 anos de história, os EUA jamais tiveram um candidato a presidente negro. Mas quase. Antes das eleições de 1996 o então general Colin Powell criou um frisson nacional durante a divulgação de suas memórias. O livro vendeu 2,6 milhões de cópias e a Casa Branca parecia lhe acenar. Mas ele recuou, ou melhor, Alma, sua mulher, abortou a sedução de uma candidatura. Powell se tornaria o primeiro secretário de Estado negro do país e acabou dilapidando o patrimônio de homem público ao defender as invencionices do governo Bush para invadir o Iraque.

Barack Obama não é de dar salto no escuro. Ele pode ter lançado esse balão de ensaio só para alavancar as vendas de seu novo livro, ¿The audacity of hope¿ (A audácia da esperança, ainda sem edição brasileira). Pode, também, estar testando o terreno para uma eventual candidatura a vice de Hillary Clinton. Em matéria de pesadelo para o Partido Republicano, este seria o maior. Para Hillary, pior só se os democratas decidirem que a dobradinha deve ser invertida.