Título: LULISMO SE CONSOLIDA, À DISTÂNCIA DO PT
Autor: José Casado
Fonte: O Globo, 30/10/2006, O País, p. 11

Estratégia de desvincular presidente de seu partido funcionou e, agora, governadores tentam reconstruir PT

Numa noite, logo no início da campanha do segundo turno, o vascaíno Lula desembarcou no Rio e foi apresentado a um dos filhos do vascaíno Sérgio Cabral, eleito ontem governador do estado. Não sabia, mas o garoto era fã de seu adversário, Geraldo Alckmin ¿ contra o desejo do pai.

O presidente-candidato cumprimentou-o com a mão no rosto:

¿ E aí, vascaíno? Tamos bem mas vamos ficar muito melhor, né?

Na manhã seguinte, Cabral descobriu que havia um novo eleitor de Lula na família.

O carisma irradiado em duas décadas de campanhas eleitorais pelo país, realçado cada vez mais por uma custosa estrutura de propaganda (gasto médio declarado de R$1 milhão por dia), tornou Luiz Inácio Lula da Silva ¿o político de maior expressão nacional¿, como ele mesmo se define.

Essa característica, somada a uma peculiar intuição, reconhecida pelos adversários, ajuda a explicar o novo fenômeno político-eleitoral na praça: o lulismo, consolidado na reeleição.

Uma das novidades desta temporada eleitoral é a separação entre Lula e o PT. Foi promovida nas urnas pelo eleitorado, mas estimulada pelo candidato. O candidato abstraiu-o da propaganda, dos debates e dos comícios. Quando achou inevitável, recorreu a expressões como ¿nossa organização política¿ ou, simplesmente, ¿partido¿. E sempre em referências negativas:

¿ Eu nunca imaginei que teria tanto problema com o meu partido ¿ repetia.

Eleitor separou Lula do partido

O divórcio se consolidou agora, mas o fim do casamento eleitoral entre Lula e o PT começou de fato há 12 anos, notam pesquisadores como Timothy Power, da Universidade de Oxford (Inglaterra), e Glaucio Soares, do Instituto Universitário de Pesquisas (Iuperj), do Rio de Janeiro.

Na eleição de 1994, para cada dez votos dados ao candidato presidencial, o PT conseguia seis para sua bancada na Câmara dos Deputados.

Quando elegeu-se presidente, em 2002, Lula teve uma votação individual que equivalia a pouco mais do dobro do que seu partido conseguiu para a Câmara.

Agora, na reeleição, o candidato recebeu uma soma de votos três vezes acima do patamar alcançado por seu partido na Câmara. Houve momento em que o candidato achou até que ganharia a eleição sozinho, sem ajuda dos tradicionais aliados:

¿ Eu sou um cristão fervoroso, acredito em Deus. Este segundo turno é obra de Deus, porque, veja, se eu tivesse ganhado a eleição no primeiro turno, acharia: eu ganhei sozinho ¿ desabafou no Rio, há duas semanas, depois de reclamar do partido.

O PT de Lula é caso pouco comum de organização política que chegou ao poder e encolheu. Perdeu 2,1 milhões de eleitores (13% do seu eleitorado) entre a eleição de quatro anos atrás e a do mês passado. Em 2002 recebeu 16 milhões de votos. Acabou de sair das urnas com 13,9 milhões. Chegou ao poder com 91 deputados, agora terá 83.

¿ É sempre débil a relação entre a votação para o Congresso e a votação para presidente. Porém, era mais forte no caso do PT, e estas eleições mostraram claramente o divórcio entre Lula e o PT ¿ observa Glaucio Soares, do Iuperj, acrescentando: ¿ Em 1994, a correlação entre a percentagem de Lula nas eleições presidenciais e a percentagem do PT nas eleições para a Câmara foi (de 0,60) alta e estatisticamente significativa, não ocorreria ao acaso nem uma em mil vezes. Agora, houve um grande salto e essa relação passou a ser negativa (-0,09).

Lula ficou maior que seu partido, mas isso não chega a ser uma novidade na biografia deste personagem que nasceu para a política no pátio de uma montadora de veículos, 28 anos atrás, em plena ditadura militar.

A certidão de batismo do lulismo foi passada na manhã de 12 de maio de 1978, no pátio da então Saab-Scania, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. Lula cumpria sua tranqüila rotina de presidente do Sindicato dos Metalúrgicos.

Na noite anterior, recebera o diretor da base na fábrica para uma conversa no sindicato, regada a cachaça com cambuci, fruta regional. Gilson Luiz Correia de Menezes contou-lhe que a Scania ia parar no dia seguinte.

¿ E ele deu uma risadinha assim e tal. Tudo bem. Apoiou, mas não acreditou muito ¿ contou Menezes ao GLOBO. ¿ Eu insisti: `Olha, vai parar amanhã¿...

Lula tinha razões para desconfiar. Há década e meia não havia sequer negociação salarial entre empresas e empregados. E greve era uma palavra proibida, literalmente.

Por volta das oito horas da manhã, o telefone tocou no sindicato. De um orelhão, na porta da fábrica, um operário transmitiu o recado de Menezes: a greve começara. Lula e outros diretores saíram correndo para a fábrica.

Encontraram quase tudo parado. A ferramentaria simplesmente não havia sido ligada e outras seções do pavilhão A seguiam o exemplo. Apenas em quatro áreas ouvia-se o barulho de máquinas. Os empregados se juntavam no pátio.

Lula encarava seu primeiro desafio político. Um espião do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), a polícia política da época, gravou a reunião comandada por Lula no pátio da fábrica. A transcrição encontra-se no Arquivo Público de São Paulo.

Lula apresentou-se como ¿simplesmente intermediário¿ e adotou um tom moderado: ¿ Devemos aceitar o diálogo (com a empresa), e em nenhum momento devemos deixar de conversar com quem quer que seja.

Líder do novo sindicalismo

Mas teve a intuição da chance com seu eleitorado da época:

¿ Nunca na história do sindicalismo brasileiro tivemos tanta possibilidade e oportunidade para ganhar uma causa como temos agora, pois vocês estão preparados, são adultos e estão preparados até pela dor de estômago que sentem.

Estava emergindo o líder do ¿novo sindicalismo¿. Depois da Scania, pararam todas as metalúrgicas do ABC paulista. Num país que atravessara mais de uma década sem notícia de greves, com trabalhadores vigiados nas linhas de produção e camburões da polícia nos portões das fábricas, o cenário foi revolucionado. Na sede sindical do patronato, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), empresários corriam para atualizar mapas das reivindicações e concessões feitas aos trabalhadores. Em 45 dias protocolaram-se 166 acordos sindicais, com aumento real de salários para quase 280 mil trabalhadores. Quatro meses depois, as greves eram rotina no noticiário.

Lula era uma novidade política. Começou a ser cortejado por partidos de esquerda, alguns na clandestinidade imposta pela ditadura. Rejeitava todos, como sempre fizera, alegando aversão à política. Mas o sindicato tornou-se pequeno para seu projeto. Logo negociou uma aliança de operários industriais remunerados acima da média nacional com servidores públicos (bancários e professores). E criou a Central Única dos Trabalhadores (CUT), em oposição à ¿pelegada¿ ¿ os sindicalistas cuja existência era tributada ao governo e ao imposto sindical. Na época tornaram-se comuns panfletos e cartazes em portas de fábrica com um slogan comum: ¿Trabalhador no poder¿.

Quatro anos mais tarde, já no epílogo da ditadura militar, percebeu que ficara maior que a CUT e inventou o Partido dos Trabalhadores, para o qual confluíram tendências, divisões, dissidência e dissidências das dissidências da esquerda golpeada pelo movimento civil e militar de 1964. Como no sindicato e na central, tudo girava em torno de Lula, que se preocupava em manter eqüidistância dos ¿intelectuais¿ ¿ era como se referia a ativistas de esquerda. Esse distanciamento ele preservou no tempo. Daí deriva, por exemplo, a pouca ou quase nenhuma intimidade com aliados como José Dirceu, ex- chefe do Gabinete Civil e deputado cassado na esteira do escândalo do mensalão, o primeiro da série que manchou o atual governo.

A crise é de um grupo partidário

O PT completou 26 anos. Nos últimos 17, teve em Lula seu principal condutor e único candidato, sem outro que pudesse substituí-lo. Agora, nas urnas, os eleitores fizeram exatamente isso ¿ separaram Lula do PT.

Mas qual o impacto político e as conseqüências desse divórcio sobre as relações de poder entre Lula e o PT?

¿ É difícil imaginar ¿ comenta Glaucio Soares, do Iuperj. ¿ Eleitoral e temporariamente, o PT é menor do que Lula, que não precisa mais do partido para se eleger. O esvaziamento dos petistas mais atuantes no governo, muitos atingidos pelos escândalos, mostrou que o PT não tinha um ¿time B¿ para substituir os companheiros em desgraça (temporária ou permanente). Alguns lugares foram preenchidos por pessoas ligadas diretamente ao presidente.

¿ Muitos petistas e não petistas ¿ prossegue ¿ certamente devem procurar Lula, que precisa deles. Não dá para governar o país só com a patota sindical e amigos do peito.

A distância entre o candidato e o partido reflete uma crise que não deve ser amenizada, observa o deputado mineiro Paulo Delgado, fundador e mais antigo parlamentar petista.

¿ A crise é do grupo que usou o PT como instrumento para fazer negócios. Não é uma crise da militância, de quem construiu uma utopia.

Delgado, como outros líderes regionais do PT, acabou escanteado pelo próprio partido na recente eleição e ficou sem mandato. A autofagia petista levou a uma encarniçada disputa interna, enquanto Lula navegava na liderança das pesquisas eleitorais. Nos redutos onde havia um candidato com chances reais de reeleição, um grupo adversário do próprio PT cuidou de lançar três a quatro candidatos alternativos, com a missão de obter de 1.000 a 3.000 votos cada. Resultado: muitos dos candidatos preferenciais do eleitorado do PT acabaram inviabilizados na eleição pela concorrência interna.

Lula pediu reconstrução

Houve, na análise de Delgado, uma versão eleitoral de pragmatismo de pouco ou nenhum princípios, no qual deu-se preferência no Congresso a políticos afinados com o que ele chama de ¿PT de negócios¿ em detrimento dos outros, os doutrinários.

Há chance de recuperação, acha Marcelo Déda, governador eleito de Sergipe:

¿ Vamos reconstruir o partido e essa ação começa depois de amanhã. Vamos mudar o rumo, acabar com grupos, dissidências e divisões internas.

A iniciativa foi de Lula. Ele pediu aos governadores petistas recém-eleitora antecipação da convocação do congresso nacional do PT, prevista para o segundo semestre.

¿ Vamos fazer entre abril e maio ¿ diz Jaques Wagner, governador eleito da Bahia.

Déda complementa: ¿ O PT vai ter um comando único, vai se relacionar de forma civilizada com o governo do presidente Lula e acabar de vez com esses grupelhos que são responsáveis pela situação a que chegamos.

Mas essa reconstrução, observa Paulo Delgado, só acontecerá com uma ¿desprivatização¿ do PT ¿ ou seja, a remoção dos líderes de grupos que dominaram a burocracia partidária. Sem isso, ele acha, o PT corre o risco de definhar, confinado aos grotões eleitorais, cada vez mais distanciado do eleitorado do Sul e do Sudeste, o eixo político do país.

No bojo da reeleição de Lula, o criador, cujo mandato termina em 2010, restou um problema para a criatura, o PT : como voltar ao futuro.