Título: A MILÍCIA DO PODEROSO MINISTRO
Autor: DEMÉTRIO MAGNOLI
Fonte: O Globo, 02/11/2006, Opinião, p. 7

Opresidente ao qual serve o ministro Tarso Genro admira a ditadura cubana, que pune a crítica com a prisão. O partido de Genro abriga no seu site artigos que clamam pelo ¿controle social da mídia¿. O governo Lula ensaiou esse controle por meio do projeto do Conselho Federal de Jornalismo. Desde aquele fracasso, um derrame de publicidade estatal engorda as receitas das revistas que renunciaram ao jornalismo para se dedicar a incensar o governo.

Um sonho dourado é criminalizar a opinião divergente. O ministro Genro iniciou processo contra este articulista alegando enxergar crimes contra a sua honra numa coluna que assinei na ¿Folha de S. Paulo¿ em abril de 2005. O texto, uma crítica política a ato de autoridade pública, aborda a classificação racial dos estudantes imposta pelo MEC quando Genro chefiava o ministério (confira em http://www.observa.ifcs.ufrj.br/).

Todos têm direito de recorrer à Justiça. Mas o que singulariza esse processo, além da sua futilidade jurídica, é o fato de que o poderoso ministro se serve do cargo para encarregar a Advocacia Geral da União da defesa de um interesse político particular. O expediente é uma aula inteira sobre uma certa concepção do Estado e da sociedade. O ministro não aposta um tostão do próprio bolso na empreitada de intimidação. Eu, você, nós pagamos os custos da arrogância de Genro.

Injúria é ofender a dignidade, como quando Lula qualifica seus ¿meninos¿ de ¿aloprados¿. Difamação é imputar fato ofensivo à reputação, e calúnia é imputar falsamente fato definido como crime. Comparar Geraldo Alckmin a Augusto Pinochet, símbolo do terror de Estado, como fez Genro (sim, ele mesmo!), além de uma injúria, equivale a saracotear perto da fronteira da difamação e da calúnia.

O ministro, bacharel em Direito, não pode alegar ignorância do sentido dessas figuras jurídicas quando mobiliza, contra a opinião divergente, o que enxerga como uma milícia privada de advogados.

Os críticos dos projetos de leis raciais somos descritos como ideólogos da ¿elite branca¿, uma difamação, por representantes de ONGs que colaboram com a Secretaria da Igualdade Racial. Mas nunca qualificamos os defensores desses projetos como racistas, porque compreendemos que a divergência reflete visões inconciliáveis sobre o contrato social, não um ¿conflito de raças¿. Nós dizemos que a restauração do conceito anacrônico de raça para a produção de identidades raciais oficiais colide com o princípio da cidadania, desmancha o sonho de igualdade e, inadvertidamente, irriga a árvore de onde pendem os frutos venenosos do ódio racial. Eis o sentido da ¿pedagogia racial¿ introduzida nas escolas pelo ministro.

O texto que se tornou alvo da fúria de Genro é apenas um pretexto. O deputado petista Paulo Delgado criticou seu partido por ¿cuspir na rotativa em que comemos¿, lembrando que sem a liberdade de imprensa o PT nunca alcançaria o poder. Ele lamentou o curso seguido pelo partido, que apresenta a imprensa como porta-voz das ¿elites¿ em confronto com a ¿vontade do povo¿ (isto é, a do próprio PT). Acrescente-se que, sob o lulismo, o PT tece os fios de uma doutrina hostil à liberdade de expressão. A pedagogia petista do ¿controle social da mídia¿ se difunde na opinião pública, minando os valores em torno dos quais a nação se uniu para superar a ditadura militar. Esse é o fenômeno relevante, do qual o processo do ministro não passa de expressão casual.

Genro reclamou o impeachment de FHC, com base em vagas suspeitas. Admitiu seu ¿erro¿ anos depois, oportunamente, quando o depoimento de Duda Mendonça ofereceu motivos sólidos para um pedido de impeachment contra Lula, sugestão à qual ele se opôs com indignação.

Na ocasião, auge do escândalo do ¿mensalão¿, Genro reconheceu a importância do trabalho da imprensa, afirmou que não era capaz de encontrar motivos para que alguém votasse no PT e prometeu se engajar na ¿refundação¿ do partido. Passado o furacão, elaborou uma resolução do PT que condenava a imprensa, alinhou-se à direção não ¿refundada¿ do partido e encontrou todas as razões que agora esgrime pela continuidade do sistema de poder vigente.

É curto o prazo de validade das convicções do poderoso ministro. Eu o convido a persistir no processo, mas, em nome da ética pública, por meio da constituição de advogado particular.

DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP. E-mail: magnoli@ajato.com.br.