Título: Terra nossa
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 02/11/2006, Economia, p. 30

Que pena que ele não foi eleito! É o que se pensa ao fim do filme de Al Gore. A outra frase que vem à mente é: na campanha, não se tinha idéia de que ele fosse assim tão interessante! Gore parecia um boneco pré-programado. Certinho demais para ser verdadeiro. No filme, ele é um ser humano com toda intensidade: fala do vazio após a derrota, da morte da irmã fulminada pelo mesmo tabaco que fez a fortuna da família e, sobretudo, fala do personagem principal: a Terra.

O filme entra em circuito esta semana. Não deixe de ver. É o que ele pede ao fim do filme ¿ uma propaganda boca a boca ¿ pedido que atendo com convicção: o filme é bom e a verdade, de fato, inconveniente: é muito mais confortável achar que, no planeta, os recursos são infinitos.

O tema tem se tornado inevitável. Esta semana, a intensidade do debate aumentou um pouco mais com a divulgação do relatório de Nicholas Stern, que veio para ser um marco do momento em que, definitivamente, os economistas entraram na conversa. Stern foi economista-chefe do Banco Mundial, dedicou mais de um ano ao estudo que divulgou e pôs as teses dos cientistas em contas econômicas, provando que é mais barato prevenir do que remediar. Em números: tomar medidas para conter a emissão de gases do efeito estufa custa 1% do PIB mundial. Não tomar qualquer providência pode nos custar até 20% do PIB mundial. O relatório tem outro significado: marca a solidão de George Bush. Nem mesmo Tony Blair, disposto a ir à guerra com ele, aceita a posição de Bush em meio ambiente. Ultraje maior para Bush: o homem que o venceu no voto popular, que reciclou a própria biografia e virou pop, foi nomeado por Blair consultor do governo trabalhista inglês para assuntos de aquecimento global.

Gore não inventou o tema do aquecimento global para aquecer sua biografia: alertado por um professor na universidade, que tinha uma precoce preocupação com o assunto, ele dedicou parte da sua vida política a tentar explicar aos outros a ameaça que pesa sobre o planeta. Derrotado numa eleição em tudo deplorável, pergunta-se o que fazer depois dessa avalanche em sua vida. Decide fazer palestras para mostrar o que sempre o preocupou. As palestras fazem sucesso, transformam-se em filme e alimentam um debate cada vez mais acalorado sobre os limites físicos do planeta. Há derrotas que vêm para o bem!

Os dados são alarmantes, as técnicas dos cineastas americanos dão ritmo ao documentário narrado por Al Gore. O filme captura a atenção, instrui e emociona.

Ele relata as principais descobertas da ciência e do clima que acabaram levando a um consenso, que deixa de lado um grupo pequeno de cientistas céticos sustentando que ainda não há provas suficientes. A revista ¿Economist¿, que um dia foi uma grande defensora dos céticos, fez recentemente uma reportagem de capa em que sustenta: mesmo não havendo certeza absoluta de que um processo de mudança radical no clima do planeta está em curso pela ação do ser humano, é preciso pagar o preço de deter o processo e evitar o desastre. Assim como os seguros são pagos para evitar um sinistro que talvez não aconteça. Mas existem sinais evidentes de que alguma coisa está muito errada com a Terra. No filme, pode-se ver o antes e o depois; nas geleiras que desapareceram, no emblemático Kilimanjaro perdendo a sua neve, nos Alpes europeus cada vez menos nevados, no desmonte da Groenlândia. Eventos naturais cada vez mais violentos. O que hoje já está provado é que eventos extremos, como o Katrina, têm sido mais freqüentes e mais destruidores.

Há contas simples: quando Gore nasceu, o mundo tinha 2 bilhões de habitantes, era o pós-guerra, quando os filhos nasciam em profusão, o baby boom. Hoje, ele está na meia-idade, e a população já triplicou. Somos 6 bilhões. E continuamos crescendo tirando da Terra mais do que ela consegue repor. Os Estados Unidos, os maiores poluidores do planeta, recusam-se a assinar o Protocolo de Kioto, quando o mundo já tem que saber o que vai acontecer depois de Kioto, ou seja, o mundo além de 2012. A China, segundo maior poluidor, é uma ditadura que tenta calar com censura e violência os protestos dos chineses contra os desastres cada vez mais freqüentes. O Brasil, dono de uma biodiversidade exuberante, de um estoque privilegiado de água doce, terra natal de 60% da maior e mais preciosa floresta do planeta, é o quarto maior poluidor por incendiar anualmente a floresta numa proporção alarmante.

Vamos imaginar que você não acredite em nada disso, que não saiba avaliar se é muito ou pouco os 25 bilhões de toneladas de poluição que jogamos anualmente na fina camada de atmosfera que nos mantém vivos. Mesmo assim, admita: a Humanidade sabe ser insensata. A novidade agora é que essa insensatez pode matar. Não a Terra. Ela pode continuar vagando no espaço sem oxigênio; ela pode rodar em torno de si mesma, em volta do Sol, eternamente, sem gelo, sem floresta, sem água, sem vida. A ameaça está sobre nós. Os cientistas acham que o problema é climático; os ecologistas, que é ambiental; Stern calcula que é um problema econômico; Gore sustenta que é uma questão moral. Sejamos apenas práticos: não se destrói a única casa na qual se pode morar.