Título: Eleições na Nicarágua, de Lenin a Lennon
Autor: Renato Galeno
Fonte: O Globo, 02/11/2006, O Mundo, p. 34

Em versão moderada, o sandinista Daniel Ortega é favorito no domingo

As eleições na Nicarágua costumavam ser uma espécie de fóssil da Guerra Fria, com os românticos revolucionários sandinistas de um lado, e a direita apoiada pelos EUA do outro. Desde o pleito de 1990, o comunista anticlerical Daniel Ortega enfrentava o candidato único da direita. O script pouco criativo se repetia: duas ideologias se enfrentavam durante os meses da campanha eleitoral, e Ortega perdia no fim, devido à grande rejeição a seu nome por conta dos 50 mil mortos da guerra civil. Em 2006, porém, as certezas do passado se relativizaram, os discursos e as cores mudaram, as alianças surpreenderam. E, sim, Ortega está perto de voltar ao poder.

Direita chega dividida às urnas

Na Nicarágua de hoje, a direita pela primeira vez chega dividida às urnas, com dois candidatos. O movimento de Ortega também rachou, e, nas eleições de domingo, há dois candidatos herdeiros da Revolução Sandinista de 1979. Para confundir mais, há a improvável aliança entre o ex-presidente direitista Arnoldo Alemán e Ortega.

¿ Há uma fragmentação das forças políticas na Nicarágua, que vem de ataques aos dois campos hegemônicos, os liberais e os sandinistas, que não conseguiram resolver a crise, e do fato de que líderes e suas bases de apoio estão insatisfeitos. Temos tanto a esquerda quanto a direita buscando mudança, fora do Partido Liberal Constitucionalista (PLC) e da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) ¿ disse ao GLOBO o cientista político americano William Robinson, que até 2002, foi professor da Universidade Americana de Manágua.

A primeira grande surpresa é o próprio Ortega. O destemido líder guerrilheiro, que derrotou a cruel ditadura da família Somoza em 1979 e, durante seus 11 anos de governo, expropriou terras, propriedades e expandiu o comunismo no continente além de Cuba, agora adota um tom moderado. Dizendo ser o candidato da reconciliação, a cor de sua campanha deixou de ser o rubro-negro da bandeira da FSLN e agora é o rosa. E ele inicia seus discursos sempre com apelos à religião.

A música de campanha de Ortega é uma versão para ¿Give peace a chance¿, de John Lennon, na qual o refrão foi alterado para ¿lo que queremos/ es trabajo y paz/ reconciliación¿. Faz mal aos ouvidos, mas tem apelo popular. Piada corrente em Manágua é que Ortega passou de Lenin a Lennon.

Ortega, que tem entre 33% e 34,4% nas pesquisas, escolheu como candidato a vice o ex-líder dos contras (milícias que lutaram contra os sandinistas) Jaime Morales Carazo. Carazo é padrinho de Alemán, ex-arquiinimigo de Ortega. Sim, ex-inimigo. Ortega e Alemán fizeram o chamado Pacto, no qual aliados dos dois passaram a ocupar cargos no governo e evitam prejudicar interesses um do outro. Desta forma, Alemán, condenado a 20 anos de prisão por corrupção, teve o regime de detenção alterado. Ortega, por sua vez, não teve o caso em que é acusado de estuprar por anos sua enteada Zoilamérica Murillo julgado, pois ganhou imunidade parlamentar vitalícia.

Mas não foi apenas Ortega que mudou. A direita se divide entre o tradicional PLC, do candidato José Rizo, e a Aliança Liberal Nicaragüense (ALN), de Eduardo Montealegre. Rizo é o candidato de Alemán. Montealegre, que foi ministro da Fazenda do atual governo de Enrique Bolaños, se apresenta como o único capaz de derrotar tanto Alemán quanto Ortega. Nas pesquisas, ele tem entre 22% e 25,4% das preferências. A cor da direita no país do sandinismo é o vermelho.

¿ Depois de cinco anos de fracassos políticos neoliberais, houve divisões dentro da classe dirigente, o que é normal. A Nicarágua está se tornando uma país normal ¿ analisou o cientista político Oscar-René Vargas.

Se esta divisão poderia significar uma vitória fácil para Ortega, o candidato foi surpreendido por uma grande cisão no sandinismo. Desde o início da década de 1990, uma parcela dos intelectuais da FSLN demonstra não aceitar mais o domínio absoluto que Ortega tinha sobre o partido. Formaram o Movimento de Renovação Sandinista (MRS), que permaneceu pequeno até este ano. Foi quando o popular prefeito de Manágua, Herty Lewites, insistiu em disputar primárias contra Ortega e foi expulso do partido. Com ele, saíram figuras históricas do sandinismo. Lewites sofreu um ataque cardíaco há três meses e morreu. Seu vice, Edmundo Jarquín, assumiu seu lugar, veste uma camisa laranja e drena hoje parte dos votos de esquerda, variando entre 10,9% e 14,8% nas pesquisas.