Título: ORTEGA EM NOVA VERSÃO PAZ E AMOR
Autor: Renato Galeno
Fonte: O Globo, 04/11/2006, O Mundo, p. 43

Líder sandinista suaviza discurso político e se alia à Igreja Católica para voltar ao poder na Nicarágua

MANÁGUA. Vinte e sete anos depois da vitória da Revolução Sandinista, muita coisa mudou na Nicarágua. O país se tornou uma frente de batalha da Guerra Fria entre o governo comunista e os contras financiados pelos EUA, empobreceu e continuou miserável nos 16 anos que se seguiram ao fim do governo sandinista. Mas nada parece ter mudado tanto quanto um de seus 5,5 milhões de habitantes, o mais conhecido deles. O comandante Daniel Ortega tenta reescrever sua história pessoal nas eleições de hoje com uma radical moderação que deixaria o mais mordaz crítico do estilo ¿Lulinha paz e amor¿, adotado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2002, boquiaberto.

¿ Viva a reconciliação, viva a solidariedade, viva o amor ¿ exclamou Ortega, no encerramento de seu último comício, quarta-feira, em Manágua, num tom de voz mais comum em pastores evangélicos do que em ex-líderes guerrilheiros.

Candidato abandonou o vermelho nas roupas

A mudança de Ortega vem ocorrendo há anos, desde que deixou o governo, em 1990. Se no pleito de 96 seus discursos ainda tinham frases marxistas, em 2001 já abandonara o vermelho comunista. Nesta campanha, só usou branco. E apelou aos nicaragüenses em todos os discursos:

¿ Pelo amor de Deus, nos deixem governar em (tempos de) paz.

A frase é sintomática: Deus e paz. O comunista anticlerical dos tempos da revolução diz ter se convertido ao cristianismo. O dado é importante não só pela força política da Igreja Católica no país, mas em termos históricos: foi numa missa campal em Manágua, em 1983, que o Papa João Paulo II teve que ouvir coros populares revolucionários. A imagem mais marcante daquela viagem foi a do padre Ernesto Cardenal, ministro da Cultura, ajoelhado diante do Papa, enquanto João Paulo, dedo em riste, exigia que ele deixasse aquele governo ateu.

Hoje Ortega se aproximou de um dos maiores críticos de seu governo, o cardeal Miguel Obando, que pediu para Washington financiar os contras para derrubar Ortega. Já Cardenal deixou a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) em 1994 por discordar do excessivo poder de Ortega e apóia o candidato da dissidência sandinista MRS, Edmundo Jarquín, mas chegou a dizer, quinta-feira:

¿ Creio que seria preferível um capitalismo autêntico, como o de (Eduardo) Montealegre, que uma falsa revolução (Ortega).

Polêmica em sua aproximação com a Igreja

A aproximação de Ortega com a Igreja não ocorreu sem polêmica. Há duas semanas, a FSLN e seus deputados aprovaram uma lei que torna crime todo tipo de aborto. O sandinismo, que foi considerado o mais feminista dos movimentos revolucionários, mudou muito.

Mais polêmica ainda, porém, foi sua aliança com o ex-presidente Arnoldo Alemán. Em 1999, a FSLN e o Partido Liberal Constitucionalista de Alemán fizeram o Pacto. Com o controle da Assembléia Nacional, passaram a dividir entre si instituições como a Corte Suprema de Justiça e o Conselho Eleitoral. Ortega e Alemán passaram a ser parlamentares vitalícios, com direito a imunidade.

¿ O Pacto significa governar num sistema de ditadura bipartidária com o homem-forte de um partido fazendo concessões ao homem-forte do outro para continuar seu domínio. Líderes sem escrúpulos fazem qualquer coisa para encontrar um equilíbrio entre si e manter o poder ¿ afirma o sociólogo americano William Robinson.

Já outros analistas acreditam que tanto a aproximação de Ortega com a Igreja como com antigos adversários políticos só demonstra um pragmatismo natural em situações deste tipo.

¿ Foi o mesmo que a ditadura militar brasileira fez para encontrar uma saída junto à oposição. Do ponto de vista da esquerda, isto pode ser considerado uma traição. Heloisa Helena considera algumas políticas de Lula uma traição também ¿ afirma o cientista político Oscar-René Vargas.

Ex-companheiros de Ortega da FSLN acreditam que o partido deixou de representar o sandinismo histórico.

Ortega aparentemente não só moderou o linguajar e trocou o guarda-roupa. Sexta-feira, assinou um documento redigido pela Câmara de Comércio no qual se compromete a criar um clima de segurança jurídica e respeitar a livre empresa ¿ uma espécie de Carta aos Brasileiros de Lula, em 2002. Mas no seu programa de governo as mudanças já eram marcantes. Em vez das expropriações de latifúndios e de mansões ¿ o próprio Ortega mora num casarão expropriado de um líder dos contras, Jaime Carazo, que hoje, curiosamente, é o candidato a vice em sua chapa ¿ o sandinista prega um programa de microcrédito.

Governo seria similar ao de Lula, diz analista

Como seria um governo Ortega? Vargas responde sem piscar.

¿ Será Lula. Ele não será um Hugo Chávez. Para transformar a Nicarágua, fará o que Lula faz. Ele vai manter a ligação do país com o Banco Mundial. Não haverá reforma agrária com expropriações. Ele se aliou a outros setores ¿ disse Vargas, que já morou no Brasil. ¿ A realidade política do Brasil é outra, a oposição de direita é outra. Se Lula fosse candidato aqui e fizesse os discursos que fez no final de sua campanha (no segundo turno), a direita o chamaria de extremista.

Mesmo o crítico Robinson acredita que a moderação de Ortega é real, qualquer que seja a razão.

¿ Acho que as ações têm caráter manipulador, mas são reais no sentido de que, se Ortega vencer, não haverá um governo revolucionário e socialista. Não será uma Venezuela. Não haverá confronto com grandes poderes capitalistas. Teria algum tipo de redistribuição de riqueza através de gastos do governo. Haveria uma face humana que conteria alguns dos piores excessos do neoliberalismo. Neste sentido, os pobres poderiam se beneficiar um pouco.