Título: Um inimigo mais letal do que a Aids
Autor: Roberta Jansen
Fonte: O Globo, 10/11/2006, O País, p. 27

Falta de água limpa mata por ano 1,8 milhão de crianças no mundo

Em boa parte dos países pobres a falta de saneamento básico representa uma ameaça maior à população do que os conflitos armados e doenças letais. A água suja está diretamente relacionada à morte de 1,8 milhão de crianças por ano, vítimas de diarréia, em todo o mundo. Esse número é seis vezes maior que o de mortes anuais em conflitos armados dos anos 90. Também supera o total de mortes provocadas anualmente pela malária (1 milhão) e pela tuberculose (1,5 milhão). A falta de água limpa mata cinco vezes mais crianças do que a Aids.

Ainda assim, diferentemente de guerras, desastres naturais e epidemias, o problema não mobiliza a ação internacional, denuncia o Relatório de Desenvolvimento Humano 2006 da ONU. "Como a fome, essa é uma emergência silenciosa vivenciada pelos pobres e tolerada pelos que têm recursos, tecnologia e poder político para combatê-la", diz o documento. No mundo, segundo os dados da ONU, 1,1 bilhão de pessoas não têm acesso à água limpa e 2,6 bilhões não dispõem de rede de esgoto.

- Não ter acesso a saneamento básico é uma forma educada de dizer que as pessoas precisam buscar água para beber, cozinhar e se lavar diretamente em lagos, rios e canais contaminados com excrementos humano e animal - explica Kevin Watkins, coordenador e principal autor do relatório.

Na Bahia, número de mortes dobra em casas sem sanitário

Água contaminada e ausência de redes de esgoto são vetores tão poderosos na transmissão de doenças que o simples fato de ter um vaso sanitário em casa reduz em mais de 50% o risco de uma criança morrer antes do primeiro aniversário. O relatório cita como exemplo favelas em Salvador, na Bahia, em que o número de mortes de crianças é o dobro em casas sem sanitário.

Águas sujas podem transmitir doenças causadas por bactérias (como cólera e meningite), por vírus (caso da hepatite A e diarréias), por vermes (como a esquistossomose), entre outros agentes. Crianças vitimadas com freqüência por doenças ligadas à água têm rendimento pior nas escolas. Infecções parasitárias retardam o aprendizado de mais de 150 milhões de crianças. Segundo a ONU, essas infecções causam a perda de 443 milhões de dias de aula por ano.

O relatório diz que a qualquer momento em que se avalie o estado de saúde das pessoas dos países pobres, em média, metade delas estará sofrendo de alguma doença relacionada à água suja. O custo é tão alto que, em algumas áreas, como a África Subsaariana, há uma perda anual de 5% do Produto Interno Bruto (PIB) - mais do que a região recebe em ajuda humanitária.

A adoção de hábitos básicos de higiene, como lavar as mãos, poderia minimizar o impacto de alguns dos problemas. Mas num mundo em que o acesso à água é extremamente desigual até isso é complicado. Enquanto um americano consome mais de 500 litros diários, um morador de uma favela de países pobres conta com menos de 20 litros para beber, cozinhar e se lavar.

Mudanças climáticas agravam drama da fome

O relatório estabelece como meta que toda pessoa tenha, ao menos, 20 litros de água limpa por dia. A ONU diz que seriam necessários mais US$4 bilhões por ano para reduzir a desigualdade do acesso à água, um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento humano.

O Brasil, um dos países com mais água, também é citado como exemplo de escassez. A água abundante na pouco habitada Amazônia é um recurso cada vez mais raro no Nordeste.

O relatório destaca que as mudanças climáticas agravarão a escassez. "Não estamos falando de algo para daqui a 50 anos, mas de um problema que já acontece", diz a ONU. um exemplo é a seca severa no Norte da África. O estudo diz que o aquecimento mudará o padrão de distribuição de chuvas com efeitos dramáticos para a agricultura nos países pobres. Enquanto países ricos de clima temperado terão produção maior, no mundo em desenvolvimento a oferta de alimentos despencará. mais uma vez o Nordeste do Brasil é citado como uma das áreas mais vulneráveis do mundo.