Título: Que a Bolívia respeite a soberania brasileira
Autor: FRANCISCO CARLOS TEIXEIRA DA SILVA
Fonte: O Globo, 17/11/2006, Opinião, p. 7

Na última semana foram realizadas em Jaci-Paraná e Porto Velho as audiências públicas para debater a viabilidade das hidrelétricas do Madeira, duas usinas com capacidade de 6.500 MW. Citado pelos principais candidatos na campanha presidencial, o projeto é indispensável para evitar o estrangulamento energético do país e para incrementar as condições de vida na amazônia. Em adição, não há alternativa para atender à demanda projetada por energia, sobretudo porque a termoeletricidade é mais cara, mais poluente, causa dependência tecnológica e, paradoxalmente, de combustível para gerar energia. E, para o crescimento econômico, os investimentos devem ser feitos agora.

O projeto terá impactos ambientais, embora sua concepção inove na redução dos efeitos, com turbinas do tipo bulbo, já utilizadas na Europa e no Japão, que permitem reservatórios a fio d"água, pouco superiores à calha do rio quando da cheia, além de um sistema de transposição de peixes que simula condições naturais hoje existentes.

Destaca-se, por isso, a discussão democrática com a sociedade e a tecnologia nacionais que permite que os impactos socioambientais do projeto se restrinjam ao Brasil, ao contrário do que têm propalado ONGs financiadas e sediadas no exterior, que tentam transferir as decisões do projeto para o âmbito do Direito Internacional, onde podem acobertar formas de coerção exercidas através de redes comunicacionais transfronteiriças, visando influenciar "formadores de opinião" dos espaços nacional e internacional.

as audiências públicas giraram em torno dos erros e injustiças do passado. O Movimento dos atingidos por Barragens, atuante entidade de protesto contra a arrogância burocrática, é o produto político do passivo existente. E assim, em Jaci-Paraná ou em Porto Velho, o que se viu foi uma vitória dos movimentos sociais: tornou-se a ação do Estado presente e cuidadosa, obrigando-o a ouvi-los.

a situação não é diferente para os empresários. Por isso, o debate deve focalizar o futuro. Caso queiram ser parceiros do desenvolvido nacional e da valorização da amazônia, deverão levar em conta as suas especificidades. Para estes, a questão é transformar o Projeto Madeira em um paradigma do desenvolvimento auto-sustentado.

algumas tendências emergiram do debate:

- não é possível repetir o passado: não há espaço político e social para mais erros, que não serão tolerados num país democrático e onde o movimento social é organizado e vigilante. assim, os esforços técnicos do projeto deverão dar conta do conjunto das demandas socioambientais, em uma parceria com as diferentes esferas do poder público.

- não é possível a imposição de papéis ou identidades culturais ao "outro": o projeto de futuro de cada um será decidido pela população local, com tanto direito ao uso dos recursos naturais do país quanto possui um paulista, pois não é aceitável a imposição de cidadanias diferenciadas aos brasileiros em nome da preservação ambiental: todos possuem os mesmos direitos, incluindo-se aí o direito a empregos dignos e bem remunerados;

- não é possível transferir a esfera decisória do projeto para o âmbito do Direito Internacional, no qual atores exógenos ao interesse nacional possam "intervir em nome do bem comum", subtraindo tais decisões do âmbito do direito do Estado brasileiro, responsável pelo bem-estar do povo de Rondônia e pela segurança energética do Brasil.

- não é possível aceitar a mal-intencionada tentativa de fazer do projeto uma espécie de "novo contencioso" da relação bilateral Brasil-Bolívia, uma vez que não há impactos naquele país. Nestas condições, é de esperar que, assim como o Brasil respeitou a decisão soberana da Bolívia quando da nacionalização das suas reservas de hidrocarbonetos, a Bolívia também ass='destaque1'>respeite a soberania brasileira quando do desenvolvimento do Projeto Madeira, não cedendo a um jogo de ingerências veladas que tende somente a gerar vulnerabilidades na região.

- não é possível ceder ao discurso que prega a lógica da "redoma sobre a amazônia", cujo objetivo é controlar os estoques de natureza pertencentes ao espaço nacional - encarados como reservas internacionais de recursos energéticos e relacionados à biodiversidade, poupança para o uso futuro da "humanidade" - , mas cuja conseqüência real é a perpetuação de uma dinâmica de degradação há muito implantada na região.

Derrotados em impedir as audiências, entidades descompromissadas com a população e com o desenvolvimento do Brasil insistem em impor aqui uma velha e falsa oposição - típica de países de alto IDH, cujas populações vivem da predação dos recursos naturais do planeta - entre agenda social e agenda ambiental.

Não podemos cair na armadilha de abrir mão do bem-estar de milhões de cidadãos brasileiros em nome de um consumo incomensurável das elites ricas do planeta. O desafio possível - para o Estado, para os empresários e para o movimento social autônomo - é alinhar a questão social e a questão ambiental no âmbito da agenda do Estado-Nação.

FRaNCISCO CaRLOS TEIXEIRa Da SILVa é professor de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro.