Título: Zelig
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 15/11/2006, O País, p. 4

O presidente Lula cada vez mais se parece com o personagem de um pseudo-documentário de Woody Allen, de 1983, sobre a vida de Leonard Zelig, o homem-camaleão, que modificava a aparência para agradar às outras pessoas. Políticos que privam de sua intimidade relatam, maravilhados, que Lula tem uma conversa para cada tipo de interlocutor, muda não apenas o palavreado, mas até o gestual, de acordo com as circunstâncias. Dizia-se de Fernando Henrique que ele tinha o dom de dar a impressão ao interlocutor de que estava sempre concordando com ele, embora acabasse fazendo o que bem lhe aprouvesse. Fernando Henrique fazia isso através do silêncio, Lula faz através da fala.

Como líder sindical, aprendeu a galvanizar as platéias, muitas vezes mudou de posição no meio de um discurso ao sentir que a assembléia ia por outro caminho e ele acabaria perdendo o controle da situação. Lula é Zelig, é feito um camaleão, já disse mais de uma vez que não é de esquerda, é apenas um operário, mas deixa sempre a porta aberta para o seu lado "esquerda", embora assuma compromissos claros com a "elite" de que não há plano B possível para a economia.

Na recente campanha, reclamou em voz alta de que os banqueiros e os empresários não votavam nele, apesar de estarem ganhando muito dinheiro em seu governo. Anteriormente, quando disputava e perdia as eleições para presidente, lamentava-se de que não conseguia convencer o eleitorado mais pobre de que ele era o único candidato capaz de melhorar suas vidas. Hoje, faz dos programas sociais sua bandeira "de esquerda", embora muitos de esquerda os considerem simples programas populistas, ou assistencialistas.

Sustenta os chamados "movimentos sociais" com verba oficial e leniência política, e vende a idéia para a "elite" de que é melhor dar-lhes espaço, sob seu controle. Coloca qualquer chapéu na cabeça, do MLST que invade e depreda o Congresso ao do cantor de rap. Faz uma política externa "de esquerda", mas com o bom senso de manter o diálogo com os Estados Unidos.

Na segunda-feira, foi a vez de liberar sua porção chavista. Além de ser lamentável que se disponha a fazer papel de garoto-propaganda de Hugo Chávez, numa solenidade claramente eleitoreira, o presidente teve uma recaída, pois já tinha abandonado esse discurso agressivo contra a imprensa e as elites.

Após a vitória do segundo turno, disse que pretendia fazer um governo para todos, que o segundo mandato teria que ser de coalizão, de negociação, e na Venezuela, com o clima exacerbado que sempre há em torno do Chávez, o presidente Lula voltou a elevar o tom. É verdade que ele vem insistindo muito no que chama de "democratização" dos meios de comunicação, mas suas críticas eram pontuais, e não genéricas, como fez na inauguração da ponte na Venezuela.

Depois da reeleição, Lula fez uma análise da sua relação com os meios da comunicação e admitiu que só é o que é hoje por causa deles: "Tanto a imprensa escrita quanto a imprensa falada, eu penso que elas prestam um trabalho extraordinário à sociedade. Por mais que eu tenha queixa da imprensa, acho que todo mundo tem queixa da imprensa, eu só sou o que sou por causa da imprensa. Ou seja, como diriam aqueles políticos mais importantes do que eu: falem mal, mas falem de mim", comentou bem-humorado.

Mas acrescentou: "Seria hipocrisia da minha parte não dizer que, neste país, há momentos em que os meios de comunicação abusam do seu poder". Deu exemplo de estados em que grupos políticos exibiam mais seus candidatos do que os adversários, e citou a possibilidade de dar canais de televisão para sindicatos, universidades e outros movimentos sociais.

Esperemos que a declaração da Venezuela, comparando a situação política de lá com a nossa, seja apenas uma empolgação passageira, um mimetismo chavista, e não uma posição política consolidada. Mas é preocupante, pois desde que não ganhou no primeiro turno ele vem aumentando essas críticas, sempre batendo na tecla de que foi perseguido pela imprensa, o que não é verdade.

Ele foi perseguido pelos fatos, criados pelo PT e pelos seus aliados. Todos os ministros do chamado núcleo duro do governo tiveram que sair, o último foi Luiz Gushiken, e todos respondem a processos. Antes, haviam deixado o governo o ex-chefe do Gabinete Civil, José Dirceu, acusado pelo procurador-geral da República de ser o chefe de uma quadrilha que foi montada dentro do Palácio do Planalto; e o ministro da Fazenda Antonio Palocci, depois de ter mandado quebrar o sigilo bancário do caseiro Francenildo Pereira.

O único sobrevivente do núcleo dirigente petista que assessorava diretamente o presidente Lula é o secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, que deve continuar no governo no segundo mandato. Além de Dirceu, os dois presidentes do PT - José Genoino e Ricardo Berzoini - foram acusados de irregularidades variadas, do mensalão ao complô de compra do dossiê contra candidatos tucanos. Isso não pode ser uma coincidência, ou um complô. Não pode ser culpa de outras pessoas, mas do próprio PT e do próprio governo.