Título: Reflexos da desigualdade
Autor: HAMILTON GARCIA DE LIMA
Fonte: O Globo, 18/11/2006, Opinião, p. 7

Aradical desigualdade brasileira tem, como não poderia deixar de ter, Reflexos sobre a dinâmica política. Negar este fenômeno pode ser uma tomada de posição ideológica - pós-moderna, de centro ou esquerda, tanto na busca da melhoria do ambiente social quanto empenhada em manter o poder de forma demagógica -, mas não científica, pois implicaria negar seus Reflexos sobre todo o sistema social (saúde, educação etc.), inclusive na economia (produtividade, empregabilidade etc.). A rigor, do ponto de vista humanista, são esses efeitos que se quer elidir quando se combate a extrema desigualdade, e não apenas a dificuldade de acesso aos bens de consumo no mercado, como na ótica capitalista.

Na política local, sua pior conseqüência é a irresponsabilidade eleitoral, plasmada no político superficial-bonachão e no eleitor despolitizado-esperto que vende o voto por necessidade ou o concede em proveito de algum benefício privado - imediato, diante de uma emergência médica ou uma churrascada, ou mediato, no caso de uma expectativa de emprego -, não importando que a fonte de tal regalia tenha origem no desvio de recursos públicos.

Ao par das carências materiais, que são a origem primária dessas práticas entre os cidadãos, a desigualdade nos enlaça também através da cultura, como cristalização de vivências passadas e reprodutora de práticas tradicionais. Em nossa história colonial-nacional, o público nasceu do privado e foi aprisionado por ele até o Estado se fortalecer ao ponto de cobrir, com sua autoridade, todo o território nacional - processo ainda não completamente concluído em função da crise de autoridade que vivenciamos. Restou disso a confusão entre a fronteira do público e do privado.

Os tentáculos da desigualdade são também manipulados por elites dominantes que se apropriam privadamente do excedente público quer como forma de maximizar suas vantagens competitivas no mercado, de acumular patrimônio ou mesmo para se cacifar financeiramente no jogo político-eleitoral. A forma democrática deste último tipo de dominação (arcaica) implica a redistribuição de parte dos excedentes politicamente apropriados para os setores sociais subalternos ávidos de participação no butim e sem condições ou predicados para a auto-organização, estabelecendo desse modo a roda-viva da reprodução do atraso.

A questão a responder é se a democracia poderá superar esta herança maldita, e seus atuais interesses cruzados, ou se está fadada a perpetuá-la, num círculo vicioso, até um novo impulso autoritário, prussiano ou popular, se apresentar para dar conta do desafio. A resposta está na capacidade dos próximos governos em derrubar os dois grilhões básicos do atraso político brasileiro, que movem a roda-viva: a dependência econômica e a incompetência educacional - dois fatores associados à pobreza, mas que afetam também os estratos médios do país.

Tanto os conservadores quanto os progressistas sabem da perda de terreno do país nestes 26 anos de estagnação econômica e que nela os problemas nacionais não terão solução, mas ambos não parecem capazes de reunir as forças suficientes ou dispostos a afrontar as conveniências imediatistas para romper com a economia política das três refeições por dia - cuja fórmula se mostra eleitoralmente exitosa desde 1994.

Sem superar este problema-chave, é pura bazófia afirmar que a democracia é vitoriosa apenas porque nos propicia espetáculos eleitorais bienais. Qualquer sistema político só se estabiliza se for capaz de dar conta de suas "tarefas históricas", ditadas por suas necessidades sociais. Entre nós, o sistema democrático depende do fim da roda-viva da desigualdade para alçar vôo estável, e a condição sine qua non para isso é uma significativa e sustentável aceleração do PIB com o resgate de nossas dívidas sociais. Aliás, nossa democracia foi restabelecida, em 1984, em nome desta meta básica, mas acabou se acomodando aos pequenos avanços paliativo-incrementais estimulada por uma cidadania que perdeu a capacidade de pressionar por soluções radicais.

As elites virtuosas do país, conscientes desta terrível realidade, precisam se articular para desmontar a armadilha político-eleitoral que nos enredou, antes que ela nos acabe conduzindo à terrível conclusão de que a democracia, tal como nos diziam os teóricos do autoritarismo instrumental, tem entre nós apenas o papel de legitimador da ordem dominante, e que, para progredirmos, precisamos de atalhos não tão belos mas mais eficazes, capazes de quebrar a inércia do já estabelecido.

Um passo nesta direção pode ser dado, agora, com a reforma política e novas regras para a criação de partidos disciplinadores e programáticos, que coíbam os apetites demagógico-patrimonialistas da classe política e dê alguma direção profícua à massa de eleitores.

HAMILTON GARCIA DE LIMA é cientista político da Universidade Estadual do Norte Fluminense.