Título: FALTA UMA POLÍTICA DE SANEAMENTO
Autor: Jorge Pesce
Fonte: O Globo, 23/11/2006, Opinião, p. 7

No recente relatório da ONU sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), deu-se destaque especial para os problemas de saneamento, questão muito presente nos discursos de campanha dos candidatos e nos primeiros pronunciamentos do presidente reeleito.

Quando autoridades brasileiras falam sobre saneamento, focam seus discursos em captação de água e tratamento de esgoto. Esquecem um dos pontos nevrálgicos da questão: o manejo de resíduos sólidos, isto é, a coleta e destinação correta do lixo, especialmente, do lixo urbano.

A visão moderna é a do saneamento ambiental, em que as questões de água, esgoto e gestão do lixo urbano são tratadas de forma integrada, pois praticamente não existem soluções independentes. Se o lixo urbano é lançado na Natureza, contaminando os mananciais com o chorume, o tratamento da água fica ainda mais caro; quando o lodo das estações de tratamento de esgoto é depositado nos lixões, transforma-se em reforço para o chorume.

Analisada a questão pelo ângulo do saneamento ambiental, verifica-se que, algumas vezes, um avanço que se obtenha em um dos três aspectos pode representar atraso em outros. Nos últimos 10 anos, a coleta regular do lixo urbano avançou de forma incontestável em todo o país. Hoje, quase 100% do que é gerado nas regiões metropolitanas são coletados regularmente.

Entretanto, como o Brasil não dispõe de técnicas modernas e ambientalmente corretas de destinação final, 60% do lixo coletado são lançados diariamente em lixões, encostas, leitos de rios etc. São cerca de 90 mil toneladas diárias de lixo contaminando reservas de água potável e gerando gases do efeito estufa. Como conseqüência direta deste quadro, o Datasus contabiliza 803 mil internações por ano em hospitais públicos em face das doenças sanitárias (diarréia, leptospirose, infecções e outras), motivadas por água contaminada, lixo, vetores do lixo e do esgoto não tratado. O custo dessas internações, com base na média informada pelo SUS, vai a R$400 milhões anuais.

Em 2005, o Ministério das Cidades enviou ao Congresso o projeto de lei 5.296, instituindo a Política Nacional de Saneamento Básico, englobando serviços de água, esgoto e gestão de resíduos urbanos, baseada na constatação de que "a disposição inadequada dos resíduos sólidos urbanos e a dos esgotos são os fatores conjuntos de maior ameaça à qualidade das águas, do ar e dos solos, e fomentadores de vetores e de reservatórios de doenças e, como tal, essas questões deveriam ser abordadas e equacionadas num mesmo nível". Após meses de tramitação e centenas de emendas propondo a supressão da gestão dos resíduos urbanos da legislação, o projeto teve o destino de outras iniciativas de legislação sobre a matéria: foi apensado a dezenas de projetos que tramitam na Casa há mais de 15 anos.

O mundo já descobriu que lixo é matéria-prima, e como tal não deve ser simplesmente enterrado. Na Europa, a Diretiva 1999/31/EC determina a redução drástica do envio do lixo biodegradável para os aterros sanitários, sendo esta uma de suas principais metas de redução de emissões dos gases do efeito estufa (o metano gerado pelo lixo orgânico nos aterros é um dos vilões do efeito estufa).

Os países da União Européia reconhecem na fração orgânica do lixo uma fonte alternativa e renovável de energia (Diretiva 2001/77/EC). Por esta razão, suas 400 usinas possuem potência instalada de cerca de 10.000MW, tendo como combustível 50 milhões de toneladas anuais de lixo urbano. Destino semelhante é dado ao lixo nos Estados Unidos, no Japão e nos tigres asiáticos. Pode-se afirmar que, em conjunto, as pouco menos de 700 usinas de geração de energia a partir do lixo espalhadas pelo mundo possuem potência instalada superior aos 12.600MW de Itaipu.

Como costumam dizer os candidatos a cargos executivos, "governar é escolher". Na questão do saneamento, uma das escolhas mais importantes é: ou o governo cria condições para o investimento na disposição final ambientalmente correta dos resíduos urbanos, detendo, assim, uma das causas mais importantes de contaminação das águas, ou opta por investir permanentemente no tratamento das águas contaminadas e na cura das vítimas das doenças sanitárias.

JORGE PESCE é engenheiro químico.

São 90 mil toneladas diárias de lixo e 803 mil doentes anuais nos hospitais públicos