Título: POLICIAIS DO PASSADO
Autor: DEMÉTRIO MAGNOLI
Fonte: O Globo, 30/11/2006, Opiniao, p. 7

Deise Benedito, da ONG ¿Fala Preta!¿, sintetizou, em artigo recente, um mito que já desempenha a função de ideologia oficial:

¿O sistema escravagista (...) provocou inúmeras fugas de africanos(as) escravizados(as) para as matas, de onde foram resgatados(as) e recepcionados(as) por bravos(as) guerreiros(as) indígenas que não se subordinaram às investidas de desbravamento e à ocupação de suas terras. (...) Protegidos(as) pelos espíritos das matas, de companheiros(as) de infortúnio, mesmo não dominando a mesma língua, estabeleceram um pacto a favor da sobrevivência, a favor da luta e resistência contra a opressão do colonizador cruel e desumano. (...) Surgiu, em Alagoas, o primeiro e mais complexo campo de resistência, o Quilombo dos Macacos, sede do Quilombo dos Palmares, estrategicamente posicionado. (...) Alicerçados(as) com o conhecimento da agricultura, da agropecuária, da metalurgia, bagagens trazidas do continente africano, aplicando novas formas de escoamento da produção, Palmares se tornou o primeiro Estado afro-indígena das Américas.¿

O Palmares edênico era uma sociedade isolada e igualitária. O Palmares histórico apresentava uma elite dirigente nitidamente definida e mantinha relações de comércio com colonos europeus e núcleos indígenas circundantes. O Palmares edênico era o lugar da liberdade, cercado pelo oceano da escravidão. O Palmares histórico era um elemento dissonante, mas integrado ao sistema mercantil-escravista e, nos quilombos da Serra da Barriga, negros e índios capturados pelos rebeldes trabalhavam em regime de escravidão.

A usina da reinvenção de Palmares já produziu duas versões do mito. Na primeira, o paraíso terreal de Alagoas era um Estado africano puro, metáfora para a formulação original das políticas de cotas raciais. Na segunda, adaptada à atual proposta de cotas para negros e índios, ele emerge como Estado afro-indígena das Américas. Mas a muralha do mito continua a rejeitar a presença dos brancos, mulatos e cafuzos que, fugindo das autoridades coloniais, viveram no Palmares histórico.

A fabricação de Palmares como Éden é uma dimensão do empreendimento simbólico de substituição, na História nacional, do 13 de maio, dia da Abolição, pelo 20 de novembro, dia da Consciência Negra. A dimensão complementar é a abolição da própria Abolição, por meio da sua difamação.

Na hora da Abolição, o Império do Brasil disfarçou a sua derrota atribuindo o fim da escravidão ao gesto magnânimo da princesa. Mas os historiadores reconstituíram a narrativa que se queria ocultar, lançando luz sobre a primeira grande luta social de caráter nacional no Brasil. Nessa luta, líderes de todas as cores mobilizaram o povo em torno da exigência de igualdade perante a lei. Os clubes abolicionistas, as fugas de escravos, com auxílio dos ferroviários, a greve seletiva dos tipógrafos, que não imprimiam os manifestos escravistas, a recusa dos jangadeiros cearenses de transportar cativos derrotaram a escravidão e destruíram os alicerces do Império.

Na hora das cotas, a difamação da Abolição ergue um pesado manto sobre tudo isso, restaurando a narrativa mentirosa do Império e oferecendo-lhe como auréola a tese determinista segundo a qual o fim da escravidão decorreu de uma ¿conspiração das elites¿ para consolidar o capitalismo no país. A fim de produzir um Brasil dividido em raças oficiais, os usurpadores da História precisam apagar as pegadas que remetem à extraordinária luta abolicionista, de conteúdo não-racial e travada em nome da cidadania.

O mito edênico de Palmares e a difamação da Abolição são produtos de uma usina de narrativas históricas que funciona à sombra do poder público e conta com generosos financiamentos internacionais. A aliança entre a Secretaria da Igualdade Racial (Seppir), um órgão com estatuto ministerial, e a Fundação Ford, uma instituição filantrópica americana, opera a ¿retificação¿ racial da História do Brasil. A usina de ideologias emprega pesquisadores universitários e ONGs, que formam uma comunidade doutrinária militante.

A nova história racial do Brasil cumpre dupla finalidade. A primeira é sustentar politicamente as leis raciais que tramitam no Congresso e ameaçam suprimir o princípio da igualdade jurídica dos cidadãos. A segunda é reformar os currículos escolares de modo a fazer desaparecer o conceito de nação e a ¿reeducar¿ as crianças e jovens, incutindo-lhes identidades raciais fixas. Os policiais do passado não admitirão a confusão de cores. Eles almejam a pureza.

DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP. E-mail: magnoli@ajato.com.br