Título: Um mundo paralelo em que as pessoas não têm nome
Autor: Helena Celestino
Fonte: O Globo, 26/11/2006, O Mundo, p. 42

Por temer processos por violação de direitos humanos, militares não se identificam

GUANTÁNAMO. Ninguém tem nome quando entra na área da prisão de Guantánamo. Como os militares brasileiros costumavam fazer na época da ditadura, os 1.735 homens e mulheres que circulam pelos cinco campos de detenção jamais esquecem de arrancar do uniforme a etiqueta com o nome e a patente militar.

É um ritual quotidiano, adotado por todos os que ultrapassam os muitos portões do Campo Delta, sejam eles guardas, burocratas, médicos ou oficiais.

No início, evitavam ser reconhecidos pelos presos por medo de vingança, mas agora temem também processos judiciais em tribunais internacionais por violações dos direitos humanos, ação já iniciada por alguns dos que foram obrigados a morar nas gaiolas de arame.

O anonimato é só uma das inúmeras medidas de segurança em vigor nesse universo paralelo que se impõe assim que o Bandeirante da Air Sunshine aterrissa na pista da base naval americana, depois de ter feito uma enorme volta pela ponta leste de Cuba para evitar o espaço aéreo de Fidel Castro.

Assim que pára na pista, o avião é cercado por soldados, as bagagens revistadas e a liberdade de ir e vir do visitante fica automaticamente revogada.

¿ Só as iguanas têm liberdade de movimento aqui ¿ diz, com humor, um dos seis funcionários do Serviço de Relações Públicas encarregados de acompanhar os jornalistas num programa de visita de três dias a Guantánamo com o objetivo de mudar a imagem da prisão.

Funcionário deleta fotos dos jornalistas diariamente

As iguanas, emenda um advogado, são também mais protegidas do que os presos, pois os militares pagam multa de US$10 mil se atropelarem os bichos.

Mas ironias não são bem-vindas neste universo tenso, úmido e quente. Só desembarca em Guantánamo quem passou por uma investigação de quatro meses feita pelo Departamento de Defesa e assinou um documento comprometendo-se a respeitar uma longa lista de proibições. Algumas são exigências da Convenção de Genebra que proíbe, por exemplo, fotografar os presos de perto sem autorização deles ou identificá-los pelo nome e país. Mas outras só vigoram nessa prisão fora dos limites da lei americana. Podem ser prosaicas, como não usar sandálias, ou pouco compatíveis com as tradições democráticas americanas: diariamente um homem, vestido com camisas floridas e apresentado como conselheiro de segurança, revê o material fotográfico dos jornalistas e deleta sem cerimônia as imagens consideradas impróprias para publicação. No caso do GLOBO, sete fotos foram censuradas.

São proibidas fotos de torres de vigilância vazias ou de duas torres, pois podem ajudar a planejar atos de sabotagem. Também não pode aparecer nem uma nesga do mar que está sempre à vista na ilha, nem é permitido fotografar os militares.

Maioria dos soldados estava na reserva e não diz onde serve

A comunicação com o mundo exterior também é dificultada e a conexão com a internet só é possível no computador do Pentágono da biblioteca, no qual consta o aviso de que o sigilo não está garantido. Ninguém diz, mas fica claro que as conversas nas casas usadas como hotéis pelos visitantes podem ser gravadas.

¿ É a mais transparente prisão do mundo ¿ diz o capitão Daniel Byer, chefe de Relações Públicas, rebatendo as críticas.

A frase é repetida à exaustão pelos militares em Guantánamo. A maioria deles estava na reserva e foi convocada para voltar à ativa depois que o governo americano declarou guerra ao terror e se atolou no Iraque. Abandonaram os trabalhos civis e assinaram contrato de um ano de serviço na prisão. Invariavelmente afirmam que não têm motivos para se envergonhar, mas contam que evitam falar do assunto com família e amigos.

¿ Minha mulher e meu filho não sabem nada do meu trabalho, me vêem como herói ¿ diz um oficial que no Havaí trabalha como inspetor de saúde.

Por mais que defendam a necessidade de Guantánamo e estigmatizem os presos como ¿os piores dos piores¿, sentem-se atingidos pelas críticas às condições de detenção em Guantánamo e sabem na ponta da língua a data em que tomarão o avião de volta para os EUA.