Título: Polêmica sem data para acabar
Autor: Helena Celestino
Fonte: O Globo, 26/11/2006, O Mundo, p. 42

Apesar de críticas, EUA planejam ampliar prisão que guarda suspeitos de terrorismo em Cuba

Podia ser um paraíso tropical, banhado pelo Caribe e por perfumadas brisas tropicais na ponta meridional de Cuba. Mas é uma terra sem lei onde vivem 430 prisioneiros, confinados há anos em gaiolas revestidas de tela verde, sem jamais terem sido levados a julgamento.

Arames farpados, metralhadoras, portões e mais portões, controles de segurança a cada passo, olhares hostis e desconfiados criam uma tensão infernal em Guantánamo, a base naval americana que guarda desde janeiro de 2002 os suspeitos de terrorismo contra os Estados Unidos.

Apesar das recomendações do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o fechamento imediato da prisão, Guantánamo está em plena expansão. Pressionado por constantes denúncias de violação das Convenções de Genebra, o próprio presidente George W. Bush declarou que gostaria de fechar Guantánamo, mas no gulag tropical vários projetos estão em andamento.

Uma nova prisão de segurança máxima, construída à imagem e semelhança de um centro de detenção americano em Indiana, está para ser inaugurada, com capacidade para receber cem prisioneiros. Projetos de reforço de segurança dos campos de detenção foram considerados necessários depois de três presos se enforcarem em maio e estão consumindo US$1 milhão. O Pentágono acaba de anunciar a construção de um novo prédio de US$125 milhões para sediar os polêmicos tribunais militares, considerados ilegais pela Suprema Corte mas sancionados por uma lei aprovada no Congresso e agora novamente sendo examinados pelos tribunais.

¿ A prisão de Guantánamo é uma experiência falida de uma justiça de segunda classe ¿ disse o diretor-executivo de direitos humanos da Anistia Internacional, Larry Coover, ao saber da intenção de reiniciar os julgamentos dos presos no próximo ano, conduzidos por militares.

Cem presos serão liberados em breve

A despeito dos protestos, a infra-estrutura da base também está sendo reforçada: novas moradias para os militares acabam de ficar prontas, a rede elétrica está sendo modernizada e até moinhos de vento foram instalados por uma empresa dinamarquesa para aproveitar a energia eólica.

Considerado um símbolo da falência dos ideais de justiça dos EUA, Guantánamo é palco de uma batalha travada dentro e fora da prisão, quatro anos depois de Bush anunciar que instalaria na centenária base americana em Cuba um campo de detenção para guardar ¿os piores dos piores terroristas¿ da face da Terra. Ainda sob o impacto do 11 de Setembro, a idéia de uma prisão secreta não era tão chocante e 800 pessoas foram trancadas em gaiolas, vestidas em macacões laranjas, depois de capturadas no Afeganistão ou vendidas pelos paquistaneses ao Exército americano. Apesar de classificados como combatentes inimigos, poucos tinham ligação com a al-Qaeda, como o Pentágono anunciava, e denúncias de abusos cometidos na prisão chocaram o mundo. Bombardeados por constantes ações de advogados e associações internacionais, o governo americano foi obrigado, aos poucos, a revelar os nomes dos presos, a permitir a entrada da Cruz Vermelha e de advogados. Embora considerados um simulacro de justiça, uma Junta de Revisão Administrativa ¿ formada por três militares ¿ passou a rever anualmente a situação dos presos, e muitos deles foram libertados ou mandados de volta para os seus países. Mais cem sairão em breve de Guantánamo, reduzindo para 330 o número de presos. Os americanos, no entanto, não admitem erros.

¿ Isso não significa que não são homens perigosos, são soldados da al- Qaeda ou do Talibã, mas resolvemos correr o risco de libertá-los porque não queremos ser a prisão do mundo. Sabemos que 22 voltaram à frente de batalha ¿ disse o capitão Daniel Byer, do serviço de Relações Públicas.

Papel higiênico e sabão como prêmio

Para o Departamento de Defesa, todos são presos de guerra e não há ilegalidade em mantê-los sem julgamento, prática transformada em lei em setembro. Chamada Military Commission Act, essa legislação pode também acabar com o acesso dos presos a advogados. A previsão é de que apenas de 15% a 20% sejam levados a tribunais, entre eles os 14 transferidos recentemente das prisões secretas da CIA para Guantánamo, mantidos isolados e ainda sem direito a receber advogados, para evitar que sejam revelados detalhes da operação dessa rede sigilosa de presídios no mundo.

No front interno, outra guerra é travada diariamente em Guantánamo. Armados de uma estratégia de marketing, militares tentam convencer o mundo e os próprios presos de que ali há tratamento humano. Os detentos são divididos em cinco campos de alta e média segurança, onde o grau de conforto varia com a disposição de colaborar. Cerca de 35% são considerados de bom comportamento e foram alojados no Campo 4, onde celas são coletivas, há colchões, o uniforme é branco, o sabonete maior e um rolo de papel higiênico inteiro está disponível. Mas 70% deles dão trabalho diário aos guardas, mantendo greves de fome ¿ atualmente cinco são alimentados à força, amarrados em cadeiras ¿ e transformando em armas excrementos. Os chamados coquetéis (mistura de sêmen, fezes e urina) são lançados contra guardas freqüentemente.

¿ É humilhante, você é obrigado a andar 40 quarteirões todo sujo até chegar a uma ducha. Mas vai fazer o quê? ¿ diz um dos guardas, de 28 anos, há 11 meses cumprindo turnos de dez horas por dia no Campo 4.

Vigiados noite e dia por câmeras e guardas armados de metralhadoras, trancafiados em celas de tela e arame farpado ou em prisões de alta segurança, os presos ainda conseguem burlar o aparato. Em maio, três se enforcaram, provocando uma rebelião em quase todo o campo e deixando o governo numa situação difícil. No início do mês, a renúncia do secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, foi comemorada pelos prisioneiros. E, durante a visita, um preso conseguiu fazer passar seu protesto enquanto o chefe dos carcereiros mostrava o Campo 5.

¿ Onde estão os direitos humanos nos EUA? Está errado, é opressivo, venham me ver aqui na cela 104 ¿ repetiu o preso durante toda a visita.