Título: OPOSIÇÃO E GOVERNABILIDADE
Autor: Denis Lerrer Rosenfield
Fonte: O Globo, 27/11/2006, Opinião, p. 7

Odebate político atual está viciado desde os seus próprios fundamentos, visto que as propostas de governabilidade vêm sendo associadas à submissão fisiológica na repartição de cargos e outros benefícios. O espetáculo chega a ser deprimente. As propostas de coalizão já nem conseguem mascarar a entrega de ministérios e empresas estatais, embora um artifício retórico fale de uniões programáticas, como se essa expressão pretendesse dizer mais do que o loteamento da máquina estatal. Mais ainda, a oposição é acuada como se ela tivesse de participar desse loteamento em nome de uma suposta governabilidade. Quem não adere é acusado de tramar contra o Brasil.

Ora, o país não tem tido qualquer problema de governabilidade e o mais próximo que disto tivemos foi o decorrente da corrupção e da ausência de moralidade dos atuais detentores do poder, dos partidos aliados e de seu partido hegemônico, o PT. Os marcos institucionais foram plenamente respeitados e, se o governo não foi mais adiante, isto se deve aos desvios de recursos públicos, ao aparelhamento partidário da máquina estatal, e não a uma ação qualquer das oposições ou da mídia, que vem sendo acusada indevidamente, como se fosse responsável dos fatos que reproduz e denuncia. A responsabilidade incumbe os autores dessas propostas e não decorrem do ¿sistema político¿. Quando responsabilidades não são assumidas e, pior, são transferidas a um pretenso problema estrutural, um amplo espaço se abre à sua repetição.

Se algo deve ser feito nesta área, deveria começar por uma limpeza nos próprios quadros governamentais e partidários, passando pelo reconhecimento das responsabilidades políticas. Até hoje os partidos envolvidos nos escândalos não passaram os seus respectivos membros e líderes diante dos seus respectivos Comitês de Ética. Eles fogem da responsabilidade como o diabo da cruz. Para o que servem, aliás, esses ditos Comitês de Ética se a imoralidade é acobertada partidariamente? E isto independe do floreio das expressões. As palavras que têm sido utilizadas são as de ¿concertação¿ e ¿coalizão¿, a primeira uma má tradução do espanhol, usada para caracterizar a experiência chilena. Se começarmos pela ¿concertação¿, o país não terá certamente conserto. Quando essas palavras entram na cena pública, o intuito dos seus autores consiste em mudar o foco dos principais problemas.

Querer trazer a oposição para esse pretenso diálogo significa levá-la para uma armadilha. A função da oposição numa sociedade democrática consiste, sim, em denunciar a corrupção, acompanhar as investigações e avaliar os projetos e iniciativas governamentais, propondo alternativas. A crítica, e não a adesão, é a sua tarefa primordial. Se uma sociedade cessa de ter uma verdadeira oposição, ela caminha para uma solução autoritária. A governabilidade só existe verdadeiramente com uma oposição atuante, que sinalize os problemas existentes e discuta os seus encaminhamentos. A governabilidade, por sua vez, só pode ser assegurada pelo próprio governo. O atual governo teve durante a maior parte do primeiro mandato uma ampla base ¿aliada¿, conseguindo aprovar os projetos que lhe interessavam. A oposição, não esqueçamos, aprovou os projetos que considerava de interesse nacional, apesar de o governo ter uma ampla base de sustentação, que prescindiria desse apoio. Se não mais avançou, foi por falta de vontade política. Culpar as oposições por isso, não faz sentido algum.

Uma sociedade democrática vive de suas clivagens que têm como fundamento o respeito do pluralismo político. Cada partido tem o direito de fazer suas próprias propostas, procurando mostrar para a opinião pública a sua viabilidade, a sua pertinência e a sua importância. Ela se alimenta, também, dos consensos que consegue estabelecer sobre algumas grandes questões nacionais, as que possibilitam precisamente que o país adote uma rota de crescimento econômico, desenvolvimento social e pleno respeito à liberdade. Ora, o país tem encontrado uma nítida dificuldade de construir soluções suprapartidárias, atinentes ao conjunto dos cidadãos e das instituições, sem as quais a luta partidária se direciona apenas para a barganha mais imediata dos interesses demagógicos e fisiológicos.

DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.