Título: EMERGÊNCIA EM ESTADO GRAVE
Autor: Cláudio Motta e Daniel Engelbrecht
Fonte: O Globo, 29/11/2006, Rio, p. 15

Vistoria no Souza Aguiar constata problemas como pacientes no chão e falta de médicos

Pelo menos cinco pessoas estavam internadas no chão, na emergência masculina do Hospital municipal Souza Aguiar, no Centro, durante vistoria feita anteontem pela Comissão de Saúde da Câmara de Vereadores. Pacientes se amontoavam pelos cantos. Na falta de colchões e roupas de cama, permaneciam em macas de metal ou ficavam sentados em cadeiras. Na falta destas, estendiam-se no chão frio, com o prontuário colado na parede. Muitos estavam seminus, já que também não havia roupas para todo mundo. Além disso, na sala de acidentes, uma mulher estava deitada na pia.

Apesar do cheiro ruim na sala superlotada da emergência masculina, os doentes não reclamavam. O protesto vinha de parentes, indignados com a situação. O hospital tinha apenas um clínico de plantão, segundo o vereador Carlos Eduardo (sem partido), presidente da Comissão de Saúde. Em resposta ao GLOBO, a Secretaria municipal de Saúde (SMS) afirmou que o atendimento do Souza Aguiar é referência na cidade e seus problemas, pontuais.

- Hoje se exerce medicina de chão, pia e corredor. O problema é causado por má gestão e desumanidade da secretaria. A prefeitura conseguiu extinguir quatro mil leitos de cuidado prolongado nos últimos dez anos. Por isso, 80% da emergência é ocupada por idosos - disse Carlos Eduardo.

A SMS disse que o hospital recebe, em média, mais de mil pessoas por dia e que, por isso, em alguns momentos, não é possível oferecer todo o conforto desejável à população. Dados da Comissão de Saúde mostram que, mais do que boas acomodações, faltam pessoal, equipamentos e material. Apenas 3% dos atendimentos são de trauma, ainda segundo a comissão, e 7% de emergência clínica. Ou seja, 90% das pessoas poderiam ser atendidas na rede básica e acabam sobrecarregando a emergência.

Só 23% dos pacientes são da área do hospital

Apesar de haver 355 leitos, 470 pessoas estão internadas. São 115 pacientes sem leitos. Apenas 23% vêm da área onde o Souza Aguiar está situado; 30% são procedentes da Zona Oeste; cerca de 35%, da Baixada Fluminense; e mais de 10% de outras regiões da cidade, segundo levantamento da comissão. A SMS informou que, anteontem, havia na sala de homens 70 pacientes, quando o ideal seria 20. Já a sala de mulheres, que deveria atender 17 doentes, tinha 45.

- O diretor nos informou que o hospital não receberá mais doentes que não sejam de emergência, até desafogar as internações. A saúde continua em crise. Com o Pan se aproximando, os turistas ficarão onde? Albergados no chão dos hospitais? - perguntou Carlos Eduardo.

Além da falta de leitos na maior emergência do Brasil, as macas são insuficientes e 90% delas não têm grades ou roupa de cama, de acordo com vereadores da comissão. A SMS informou que já providenciou o remanejamento de macas de outras unidades. Outra medida anunciada foi a inauguração, ontem, na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, de um centro de reabilitação com 20 leitos, para absorver pacientes que precisam de tratamento intensivo.

Para o presidente do Sindicato dos Médicos, Jorge Darze, a própria SMS é responsável pelo excesso de demanda, já que deveria promover o atendimento pré-hospitalar e programas como o Saúde da Família.

- No Rio, o programa é vergonhoso, não atinge 5% da população, enquanto em cidades do Nordeste cobre 90% da população. A crise do Rio é de origem política - afirmou Darze.

O sindicato fez uma vistoria ontem no hospital e também constatou problemas graves. O tomógrafo estava quebrado. Este ano, ele não funcionou direito por 181 dias: 26 a mais do que os 153 em que não apresentou problemas. Como os médicos não podiam imprimir o resultado, passaram a fotografar a tela com o celular, que era levado para a sala de cirurgia.

O serviço de hemodiálise, que atende 64 pacientes apesar de ter capacidade para apenas 36, passou a ser feito em cinco turnos, por falta de nefrologistas. Em vez das quatro horas necessárias, cada sessão está durando três. A sala amarela, onde é feita hemodiálise em pacientes contaminados - com hepatite, por exemplo - está interditada há uma semana, por causa de uma infiltração no teto.

- A hemodiálise em tempo menor pode causar derrames e enfraquecimento dos ossos - disse José Teixeira, diretor do sindicato.

A entidade entrará no Ministério Público, ainda esta semana, com notícia-crime para exigir mais profissionais e responsabilizar a prefeitura por impedir o exercício ético da medicina. O Conselho Regional de Medicina do Rio (Cremerj) já entrou na Justiça para exigir a contratação de mais médicos, sobretudo nefrologistas. O coordenador do Conselho de Saúde Pública do Cremerj, Pablo Vazquez, afirma que a falta de pessoal é desesperadora:

- Apesar dos problemas, o hospital continua recebendo gente.

De acordo com o Sindicato dos Médicos, além do déficit de pessoal, prédio e equipamentos não têm contrato de manutenção.

- Faltam especialidades indispensáveis, como ortopedistas. Ao dizer que o problema é pontual, a prefeitura deixa de somar os pontos de cada hospital, que têm mazelas incríveis - salientou Darze.

Em nota, a SMS afirmou que é vítima de denúncias e discursos eleitoreiros, que não oferecem propostas concretas. No entanto, reconheceu que o serviço de tomografia está prejudicado desde setembro. O conserto, informou, será realizado ainda esta semana. Quanto à sala amarela, a SMS diz que o setor foi remanejado para outra área, sem prejuízo para a população. E explicou que os turnos de hemodiálise foram ampliados para atender a demanda.

Crise do setor levou governo federal a decretar intervenção

A crise na saúde do Rio já causou uma intervenção federal. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva decretou, em 10 de março de 2005, estado de calamidade pública no setor hospitalar. Há 11 dias, no entanto, Lula assinou novo decreto, devolvendo à prefeitura a gestão plena do Sistema Único de Saúde (SUS), que estava sob responsabilidade do governo estadual desde o ano passado. Com a medida, a Secretaria municipal de Saúde voltou a gerir os repasses federais, de cerca de R$500 milhões por ano, para atendimentos de média e alta complexidades, o que inclui desde cirurgias e internações hospitalares até emergências e consultas com médicos especialistas.

De março de 2005 até este mês, segundo o Ministério da Saúde, mais de R$1 bilhão deixaram de ser repassados pelo Fundo Nacional de Saúde para a prefeitura do Rio. O dinheiro foi transferido para o governo estadual. Cabe ainda ao gestor local do SUS contratar hospitais públicos, privados ou filantrópicos para prestar atendimento gratuito à população.

O decreto de Lula não alterou a situação dos hospitais da Lagoa, do Andaraí, de Jacarepaguá (Cardoso Fontes) e de Ipanema, que permanecem sob controle federal desde a intervenção.

Um problema antigo na rede municipal

A falta de profissionais é um problema que há tempos afeta a rede municipal de saúde. Há duas semanas, O GLOBO noticiou um levantamento da Comissão de Saúde da Câmara de Vereadores, segundo o qual boa parte das equipes está operando com menos da metade dos profissionais necessários. O caso do Hospital Miguel Couto foi considerado o mais grave. A emergência deveria contar com 42 clínicos gerais, mas só tem 15.

Listagem oficial, obtida em setembro pela vereadora Andrea Gouvêa Vieira (PSDB), mostrou que, apesar de a administração municipal ter 5.481 servidores na área da saúde, há déficit em algumas especialidades.

No Hospital Souza Aguiar, o déficit no seu quadro fixo, de acordo com um levantamento feito pelo Sindicato dos Médicos em outubro, era de 260 médicos.