Título: Aposta depois do resultado
Autor: Adauri Antunes, Ricardo Galhardo e Plinio Teodoro
Fonte: O Globo, 30/11/2006, O País, p. 3

Após eleição, campanha de Lula recebeu R$14,3 milhões de empresas que têm contratos com governo

Dos R$16 milhões captados pela campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) depois do dia 29 de outubro, quando Lula já estava reeleito, R$14,3 milhões (90%) saíram de empresas que têm algum tipo de contrato com o governo. Das 60 doações feitas depois da eleição, 26 saíram de 21 empresas, entre construtoras, estaleiros e indústrias com negócios com órgãos do governo. As doações são legais e, para o tesoureiro da campanha de Lula, José de Filipi Jr., empresas e cientistas políticos ouvidos pelo GLOBO, não representam conflito ético.

¿ Isso em si não é crime. Nem é imoral. Simplesmente mostra o que ocorreu e, com isso, é permitido que se cobre no futuro. Essas doações estão registradas e todo cidadão poderá acompanhar seus efeitos no futuro ¿ disse o cientista político Fernando Abrúcio, da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP).

Entre as nove maiores doações feitas após a eleição, com valores de R$1 milhão, estão os irmãos Alexandre e Pedro Grendene Bartelle (cada um doou R$1 milhão no último dia 24). Eles são donos da Vulcabrás, que, em 2004, recebeu R$35 milhões do BNDES para construir uma fábrica no Nordeste.

A Unigel S.A., dona também da Acrinor, doou R$2 milhões no último dia 24. As duas têm negócios com a Petrobras. A Camargo Correa Cimentos S.A. doou R$2 milhões e também tem negócios com o governo. A FSTP Brasil Ltda doou R$2 milhões, também no último dia 24. A empresa participa do consórcio que está construindo a plataforma P-52, da Petrobras, para operar na Bacia de Campos.

Especialista fala em esquizofrenia

Abrúcio lembra que o financiamento de campanhas presidenciais por grandes empresas e instituições bancárias já havia acontecido em 2002. A diferença, segundo ele, é que na outra eleição existia mais espaço para o caixa dois. Mas, observou, existe uma ¿esquizofrenia¿: nas doações a Lula há grande participação de empresas privadas que têm negócios com o governo:

¿ Existe essa esquizofrenia, que são as doações feitas (a Lula) por empresas privadas que são fornecedoras do governo. Mas, em tese, não há nenhum mal nisso porque as coisas estão sendo feitas de forma cada vez mais pública.

Segundo ele, as doações são feitas de acordo com a lei, o que pode ser considerado um avanço em relação ao que já aconteceu no país.

¿ Não vejo mal nessas doações. Elas se tornam cada vez mais públicas. Mas é preciso ver que efeitos essa prática terá no futuro ¿ propõe Abrúcio.

Para o também cientista político Rogério Schmitt, da Tendências Consultoria, de São Paulo, não há contra-senso ou qualquer problema nas doações de empresas privadas, mesmo as que têm negócios com companhias ligadas ao governo.

¿ Não há contra-senso. Não vejo nenhum problema. A lei abre essa brecha. Afinal essas empresas têm seus interesses, que querem que sejam defendidos. Algumas empresas pulverizam as doações, outras têm seus candidatos preferenciais. Como Lula ganhou é natural que receba mais doações ¿ disse.

Como o financiamento das campanhas eleitorais é privado, Tadeu Schmitt diz considerar natural que as grandes empresas e os bancos, os grupos econômicos mais ricos do país, sejam os grandes doadores dos candidatos.

¿ Não há contradição. É natural que o mercado financeiro e as grandes empresas sejam os maiores patrocinadores. A gente sabe que o PIB é concentrado ¿- disse.

¿O país pode ver quem financiou¿

Para o cientista político da Tendências, também não há contradição entre o perfil dos doadores da campanha de Lula e o discurso anti-elite de sua campanha.

¿ Os bancos doam, mas os bancos não votam. Quem vota é o povão. Então, é preciso separar a retórica de campanha, o discurso feito para o povão, e a política eleitoral, que não é necessariamente retórica. Não há contradição porque o país pode ver quem foram os financiadores ¿ disse.

Para o tesoureiro de Lula, a redução do caixa dois provocada pelos sucessivos escândalos envolvendo petistas afugentou boa parte dos doadores.

¿Teve gente que disse: ¿Agora que acabou o caixa dois, não dou mais nada. Não queremos ver nosso nome nos jornais¿ ¿ disse Filipi.

Anteontem, a campanha de Lula tinha estimado que o valor doado após a vitória do petista tinha sido de R$25 milhões. Das 8 mil empresas procuradas inicialmente pelo tesoureiro, 6.500 se recusaram a colaborar. Das 1.500 restantes, 350 contribuíram com a campanha. Segundo Filipi, isso restringiu o universo aos doadores tradicionais.

¿ Os 60 maiores doadores do presidente Lula arcaram com mais de 80% dos recursos arrecadados. Mais da metade deles seguramente tem empréstimos do BNDES. Só a Ambev, ao longo de sua história, tem mais de 500 empréstimos. As construtoras todas têm contratos com o governo. O que me permite dizer que isso é ético é o seguinte: as construtoras ganharam os contratos em licitações e os empréstimos com o BNDES são todos legais ¿ disse o tesoureiro.

Até o dia 29 de outubro (data da eleição) a campanha de Lula arrecadou R$78,4 milhões e gastou R$104,3 milhões, causando um déficit de R$26 milhões. Para cobrir o rombo, a equipe liderada por Filipi precisou passar o chapéu mais uma vez depois da reeleição de Lula. Foram arrecadados R$16 milhões. Os quase R$10 milhões restantes foram assumidos pelo PT.

¿ A (construtora) Camargo Correa, por exemplo, doou umas quatro ou cinco vezes. Eu me senti um chato ¿ disse Filipi.

O BNDES, por meio da assessoria, informou que não há relação entre as doações feitas por empresas e os financiamentos concedidos pelo banco. A assessoria, que lamentou ter sido procurada por volta de 20h, ressaltou que o BNDES é o maior banco de fomento da América Latina e, até outubro deste ano, desembolsou R$35,5 bilhões em financiamentos, envolvendo 88,7 mil operações de investimento, o que significa que o banco se relaciona com praticamente todas as empresas do país, de todos os portes, contribuindo para a geração de emprego e renda. A Petrobras foi procurada e não se pronunciou porque era tarde.