Título: Um país em contradição
Autor: Renato Galeno
Fonte: O Globo, 01/12/2006, O Mundo, p. 39

Venezuela de Chávez apresenta melhorias sociais, mas pobreza não dá sinal de queda

Como o Rio, Caracas é uma imensa aglomeração urbana cercada de montanhas tomadas por favelas. E é destas favelas venezuelanas, conhecidas como barrios, que saiu grande parte dos votos das três vitórias eleitorais do presidente Hugo Chávez nos últimos oito anos. O motivo de tal apoio tem nome e, no estilo grandiloqüente do governo, sobrenomes pomposos. São programas sociais chamados de misiones (missões), citados por todos os moradores dos barrios como o motivo para continuar votando em Chávez.

¿ As missões são as melhores coisas que já fizeram para os pobres da Venezuela ¿ disse Azuceña Maldonado, de 48 anos, mas com aparência de 60, próximo à entrada de seu barrio em Caracas. ¿ Pela primeira vez tive tratamento dentário.

Azuceña se referia ao programa Missão Barrio Adentro, que levou para dentro das favelas tratamento médico, antes inexistente. Muita coisa num país em que 85% da população são urbanas e no qual mais de 50% das pessoas estão abaixo da linha da pobreza ¿ segundo dados de universidades independentes, são 70%, apesar de o governo ter mudado recentemente a metodologia e garantir que o número de pobres não ultrapassa 32%.

Dinheiro da PDVSA financia projetos

Ainda assim, segundo dados do Índice do Desenvolvimento Humano da ONU, o país melhorou 1,29% entre 2000 e 2004, bem mais do que o 0,89% do Brasil no mesmo período. E a Venezuela (72º lugar) foi citada pelo estudo da ONU, divulgado este mês, como um exemplo de que é possível melhorar a qualidade de vida dos pobres mesmo sem elevação da renda.

A Missão Barrio Adentro começou com a construção de clínicas nos barrios em março de 2003. Hoje o governo estima ¿ para grande desconfiança da oposição ¿ que 70% da população já foram atendidas pelo projeto.

Algumas das clínicas receberam aparelhos mais modernos e até salas de cirurgia foram instaladas, e 42 hospitais em áreas pobres estão sendo recuperados. O projeto recebeu elogios da Unesco e da Organização Mundial da Saúde, que o consideram um exemplo de tratamento médico para populações carentes. Mas o projeto está envolto em polêmica. Grande parte dele é financiado por dinheiro da estatal de petróleo do país, a PDVSA, o que, segundo a oposição, é insustentável a médio e longo prazos. Sem o dinheiro, os investimentos nela mesma estariam paralisados e a PDVSA estaria sendo sucateada. De maneira provocativa, o governo, longe de esconder a origem do financiamento, anuncia ¿Aqui tem petróleo¿ nas missões e na vasta propaganda sobre os projetos.

Maior polêmica ainda, no entanto, gerou a mão-de-obra da missão. No início, os médicos eram todos cubanos, que recebiam apenas US$250 mensais, bem menos que os profissionais venezuelanos. Depois que venezuelanos passaram a ser treinados e a participar do Barrio Adentro, passaram a receber US$600, menos que o piso.

¿ Não me interessa se são cubanos ou venezuelanos. Minha filha vivia tossindo e agora está boa ¿ disse Anisay Meléndez.

Outro programa elogiado pela Unesco é a Missão Robinson. Trata-se de um projeto de alfabetização de crianças e adultos. Ano passado, o organismo da ONU passou a considerar a Venezuela um país livre do analfabetismo, pois ultrapassara a taxa de 95%.

Mais polêmicas são as missões Ribas e Sucre, voltadas para o ensino médio e para universitários. O governo criou um método rápido, em que se formam médicos e advogados em três anos. Há grande ceticismo sobre a qualidade destes profissionais.

O escritor Luis Britto García, um entusiasta de Chávez, afirma que a popularidade dos programas sociais do ¿governo revolucionário¿ venezuelano é o resultado das décadas passadas.

¿ O governo Chávez salvou os sistemas de educação, de saúde, de previdência social, que estavam a ponto de ser destruídos pelo neoliberalismo. A população se cansou disso ¿ disse Britto García. ¿ As missões são uma forma de humanizar o homem.

Um dos mais populares programas sociais do governo é a Missão Mercal, mercados que vendem produtos alimentícios com até 50% de desconto. Segundo números do governo ¿ que, devido a seu caráter nem sempre transparente, devem ser vistos com cautela ¿ quase 11 milhões de venezuelanos usam os mercados. O programa também é muito popular entre produtores. Com sua imensa população urbana e economia voltada quase exclusivamente para a exploração de petróleo, o país é o único da América do Sul que produz menos comida do que consome. Todos os alimentos vendidos nas missões Mercal são produzidos na Venezuela, o que, ao lado do programa de reforma agrária (Missão Zamora), está tentando levar cidadãos para o campo de modo sustentável.

Os críticos dizem que os preços subsidiados dos mercados populares não apenas desviam dinheiro de PDVSA como são uma concorrência desleal a mercados da iniciativa privada. Muitos acusam Chávez de ter criado o sistema Mercal como uma vingança contra os empresários do setor, que participaram da greve que quase derrubou o governo em 2002 e 2003. Chávez, claro, não nega isso.