Título: A frequência daquela área estava sem transmissão
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Fonte: O Globo, 02/12/2006, O País, p. 18

Controladores que trabalhavam na noite da tragédia com o avião da Gol revelam à `Época¿ detalhes do acidente

SÃO PAULO. Pela primeira vez desde o acidente com o Boeing da Gol, dois controladores de vôo quebram o silêncio e revelam, em reportagem publicada na revista ¿Época¿ que chega hoje às bancas, detalhes do episódio, contando o que aconteceu na torre de controle com a equipe responsável por monitorar os aviões. Militares da Aeronáutica, eles falam também do aquartelamento decidido em meio à crise e descrevem diversas deficiências dos equipamentos disponíveis. Os dois ainda confirmam a existência de áreas cegas nos céus do Brasil. ¿Estou tomando remédio para dormir porque a imagem na minha cabeça é o piloto brigando com a aeronave para não cair¿.

Os dois controladores relatam ainda as diversas tentativas de comunicação entre os pilotos do Legacy e a torre, todas em vão. Eles revelam que o software de controle de vôo ¿corrigiu¿ a altura do avião fabricado pela Embraer, dando a impressão de que ele estava na altitude correta. Nos dias após a tragédia, os profissionais passaram a conviver com uma pergunta, feita por diversos interlocutores: ¿Por que vocês não fizeram alguma coisa, quando notaram o problema?¿ A resposta é simples: ¿Porque, para nós, estava tudo normal¿. Os dois controladores, que pediram para não ser identificados, são chamados de A e B. Os principais trechos do que disseram:

O sumiço

Quando os controladores perceberam que o Boeing estava desaparecido, o clima ficou tenso. Controladores e oficiais chegaram a discutir.

Controlador A ¿ ¿Na hora do acidente, estava na sala ao lado, tinha ido pegar um documento. Quando voltei, vi os meninos comentando que precisavam fazer um telefonema de emergência. Aí um dos supervisores falou: `Preciso ligar logo, é uma emergência¿. Ele estava bem apreensivo. O pessoal no console estava bem diferente, desanimado. Já imaginando que algo havia acontecido, fui ver e entendi a situação. O vôo da Gol havia saído da área de Manaus às 15h35m e deveria entrar na área de Brasília às 15h50m, ou seja, 15 minutos depois. Era só o tempo de passar da zona cega.

Deu 17h20m e nada, a aeronave ainda não estava no radar. Aí eu perguntei ao controlador que estava na tela: o que aconteceu? Ele falou: `A nave não entrou e estamos em contato com Manaus¿. Antes de esse fato ocorrer, estava tudo normal. Depois do desaparecimento da aeronave, todos ficaram bem abatidos. Vi um dos integrantes da equipe balançando a cabeça, quase chorando. Outros supervisores chegaram a pedir para sair dos consoles em que estavam para tentar auxiliar os dois supervisores.

Foi quando todas as outras regiões de trabalho começaram a se voltar para a zona do acidente. Aí começou a aparecer um monte de oficiais e, nessa hora, percebemos que o pior tinha acontecido. O clima ficou pesado. Gente chorando e pedindo para sair. O supervisor pediu para a equipe que ia nos render, às 21h30m, chegar mais cedo. Os supervisores começaram a pedir calma para todos. Mas ninguém estava conseguindo trabalhar.¿

Controlador B ¿ ¿Uma das controladoras da região Rio (de Janeiro) começou a chorar. Aí o centro todo ficou comovido. Tinha de ter chegado um psicólogo naquela hora, mas não chegou ninguém. Os oficiais presentes não tinham noção da situação. Não sei, talvez não quisessem acreditar. Eles não sabiam como lidar com aquela situação. Teve até discussão entre controladores e oficiais. Ninguém sabia o que falar.¿

O Legacy

Para os controladores, o jato cumpria seu plano de vôo normal. O que não funcionava era o transponder, aparelho que poderia evitar a colisão.

Controlador A ¿ ¿O vôo do Legacy estava normal. Só tivemos noção do acidente quando o avião da Gol desapareceu. Quando o Legacy pousou em Cachimbo (Base Aérea de Cachimbo, ao sul do Pará), entrou em contato falando que fez uma descida de emergência porque havia batido em algo. Aí o controlador falou: `Como bateu, se ele estava no 360 (a 36.000 pés)? Não tem como bater¿. No nosso plano, o Legacy estava a 360. Na apresentação do radar, ele estava a 360. Aí falam que nós e os supervisores não fizemos nada e que o Legacy estava com problemas no transponder (sistema anticolisão). Sabe por que não fizemos nada? Porque nós visualizamos o Legacy a 360 e não a 370 (37.000 pés). Como ele apresentou problema no transponder, não dava para ter os dados do jato, e sim do nosso sistema.¿

Controlador B ¿ ¿A intenção de fazer contato com o Legacy era avisar que o equipamento de transponder estava inoperante, encerrar o serviço porque a aeronave ia entrar numa área que o radar não cobria e passar as freqüências do próximo setor. Só íamos avisar isso: `Responda a Manaus, e seu equipamento está com problema¿. Nada mais.¿

A falha

Os controladores dizem que o software ¿corrigiu¿ automaticamente a altitude do Legacy, dando a impressão de que eles estavam na altitude correta.

Controlador B ¿ ¿Existe uma ficha que apresenta o nível de vôo proposto e o nível autorizado. Foi isso o que induziu o controlador ao erro. Na ficha, aparecia o nível de vôo que eles estavam mantendo, 370. E o nível de vôo após Brasília, 360. Quando chegou a Brasília, o nível solicitado veio como autorizado. Ele veio automático para nós. Isso é o software que transforma automaticamente. E já tínhamos alertado para esse problema havia muito tempo. Aí o software jogou para nossa tela o nível solicitado como se fosse o autorizado.

Quando isso aconteceu, nossa visualização estava: Legacy 360, e não 370. Como o radar secundário não estava captando as informações do transponder, o radar primário, que oscila muito, mostrou o jato a 360. Lembro até que um dos controladores perguntou: `Qual é o nível do Legacy?¿. E o outro disse: `360¿.¿

Como evitar?

Se soubessem que algo estava errado, seria fácil tirar o Boeing da Gol da rota, dizem os controladores.

Controlador A ¿ ¿Se soubéssemos que o Legacy estava a 370, seria fácil. Já passamos por situações muito mais difíceis. Dava para avisar o supervisor sobre o problema, que duas aeronaves estavam em rotas contrárias e com pane de comunicação com o Legacy.

Aí seria mole (a gente), entrava em contato com Manaus e tirava o avião da Gol da rota. As pessoas falam: `Por que não fez isso ou aquilo?¿ Porque, para nós, tudo estava normal. Se colocássemos todas as situações (semelhantes) que passamos no papel, dava para fazer um livro.¿

Controlador B ¿ ¿Em Cuiabá, por exemplo, havia duas aeronaves se aproximando (em rota de colisão) e ninguém conseguia contato com elas. O controlador pediu para Cuiabá selecionar uma freqüência diferente e conseguiu contato. Já passei por umas dez situações dessas em mais de 13 anos de experiência.¿

Sem contato

A Aeronáutica chegou a declarar que não havia problemas de comunicação no dia 29. Os controladores dizem que havia.

Controlador B ¿ ¿Essa época agora de chuva é um caos. Se for no centro de controle de Brasília, agora, vai ver que está uma loucura. O setor de Cuiabá tem três freqüências de cobertura. Todas funcionam com deficiência. E a comunicação não se torna clara. Isso é muito perigoso.

Se a freqüência estiver com deficiência, ela está inoperante. Eu não posso dar uma instrução com eco, não posso falar e receber a resposta pela metade. A instrução tem de ser clara. Um problema que temos é que, quando a freqüência está inoperante, temos de esperar até abrir um chamado de pane. As panes podem durar pouco tempo. No dia do acidente, eles (a Aeronáutica) podem alegar que as freqüências estavam funcionando. Mas, no dia, a freqüência daquela área estava sem transmissão e sem recepção.¿

Controlador A ¿ ¿Só que não tem o registro, porque a pane só aconteceu naquele momento. O discurso da Aeronáutica é que o importante para o controlador não é o radar, mas sim a freqüência. E elas funcionam com deficiência. Um dia desses, um setor inteiro foi interditado por causa da falta de freqüência. Ou seja, tinha controlador, só não tinha onde trabalhar.¿

Mais falhas

Outro avião tinha relatado falha na comunicação naquele dia, diz um controlador. E acusa a Aeronáutica de esconder o fato.

Controlador B ¿ ¿É muito difícil colocar antenas em regiões de selva e florestas. Tem muita interferência. Assim tudo deveria ser feito via satélite. Metade das freqüências no país são via satélite. Aí você me pergunta: `Por que naquela região a freqüência não era feita via satélite?¿. Ouvi de um comandante da Aeronáutica que naquela região tem uma grande influência atmosférica e que os equipamentos ali instalados não resolvem.¿

Controlador A ¿ ¿E temos até mais uma prova da falta de freqüência naquela região. No dia do acidente, duas aeronaves da TAM passaram por lá e depois conseguiram contato. A primeira coisa que eles falaram: `Brasília, estou há meia hora tentando falar com vocês em todas as freqüências e não consegui contato¿. Está lá, gravado. Mas ninguém vai liberar isso. Podem até ter apagado. Quem pode provar isso? Os pilotos da TAM. Mas eles não querem falar porque, mesmo sendo civis, sofrem sanções da Aeronáutica.¿

Economia

Eles acusam as autoridades de diminuir a potência dos radares de propósito.

Controlador B ¿ ¿O Cindacta 1 (em Brasília) possui oito radares para cuidar de várias regiões, incluindo Rio de Janeiro, São Paulo e a área do acidente. Alguns dos radares apresentam defeitos e outros funcionam com a potência reduzida, ou seja, detectam uma área menor que deveria. Isso acontece porque, quando a potência de um radar é reduzida em 60%, o tempo de vida útil do equipamento dobra.¿

Zona cega

As zonas em que as torres não têm contato com os aviões são bem conhecidas, dizem os controladores.

Controlador B ¿ ¿A zona cega existe. É uma área muito grande, maior que vários estados. Pega o norte de Mato Grosso, o Tocantins e chega à Bahia. É um grande retângulo no meio do país. Existe um radar em São Félix do Araguaia que manda visualização dessa área para Manaus, mas não manda para Brasília. Desde 2003, quando o radar foi instalado, foi solicitado o envio das informações para Brasília. Aí fica naquela situação: quem vê não controla e quem controla não vê. O controlador de Manaus, que não tem responsabilidade por aquela área, não vai se preocupar. No dia do acidente da Gol, o radar primário deles (Manaus) estava inoperante. Só o secundário funcionava. O secundário lê o transponder do avião. Como o transponder do Legacy estava inoperante, Manaus não viu nada.

E existem outras zonas cegas além dessa. No norte, por exemplo.¿

Gambiarras

Os equipamentos são modernos, mas malconservados, afirmam os controladores.

Controlador B ¿ ¿O pessoal da técnica conta que os aparelhos muitas vezes funcionam com gambiarras, mesmo. Se tem um problema, o técnico remenda um fio, uma coisa paliativa que a qualquer hora pode voltar a dar problema.

O Cindacta 1 é uma casca. Quem vê a nossa base acha tudo moderno, mas falta investir no principal: antenas e radares, que passam informações para a base. Nos Estados Unidos, os consoles (monitores) são antigos, mas as freqüências e as antenas dificilmente falham.¿

Incidentes

O número de quase-colisões no Brasil aumentou, dizem os dois controladores.

Controlador B ¿ ¿Um avião tem de passar a 300 metros do outro num mesmo nível, ou a 9 quilômetros quando estiverem na mesma altitude. Não é normal um avião passar a 30 ou 50 metros de outro, mas isso acontece, e nós chamamos de incidente. A Aeronáutica quer que se acredite que isso é normal, mas é preciso avaliar o risco, se é potencial ou crítico. Nos Estados Unidos, aumentou o número de incidentes, mas diminuiu o número de incidentes críticos. Aqui não. Os incidentes críticos até aumentaram. É isso que tem de ser levado em consideração.¿

Formação

O treinamento diminuiu de seis anos para quatro.

Controlador B ¿ ¿Quando nós nos formamos, passávamos dois anos na escola e quatro fazendo estágio. Agora, por falta de pessoal, a Aeronáutica acelerou a formação. São quatro anos no total ¿ apenas cerca de um ano e meio de estágio.¿

Controlador A ¿ ¿E esse pessoal que chegou agora, os novinhos, só têm uma folga por semana. Trabalham quase todos os dias. Ficam sob uma grande pressão.¿

Controle

Eles afirmam que não há necessidade de comando militar no tráfego aéreo.

Controlador B ¿ ¿Não falamos em desmilitarização. Preferimos desvinculação sistêmica. Muita gente acha que fazemos defesa aérea, mas isso não é verdade. Nós controlamos os vôos civis. Esse negócio de que militares têm de controlar por questão de segurança nacional é uma balela.

Existe uma incompatibilidade muito grande para os militares que cuidam do controle aéreo civil. Temos de participar de formaturas, tiros, troca da bandeira, e tudo isso dentro da escala de trabalho.¿

Quartel

O aquartelamento de controladores agravou a crise.

Controlador B ¿ ¿O militar mesmo, da infantaria, por exemplo, baba quando fala em aquartelamento. Eles adoram isso. Eles querem descer a porrada. Mas nós somos controladores de vôo. Dias depois do acidente, a Aeronáutica chamou todos para a base. Não precisava. Foi só para mostrar a força que eles têm. Dentro do Cindacta foi um caos. Teve gente que ficou lá 25 horas direto. Tinha gente em estado catatônico. Só olhando para a tela, sem nenhuma reação. Teve crise de choro e até desmaios. Um oficial nos falou: `É coisa normal na nossa profissão. Vamos voltar a trabalhar normalmente¿. Mas a gente estava mal. O piloto falava comigo havia anos. Estou tomando remédio para dormir, porque a imagem que vem à minha cabeça é o piloto brigando com a aeronave para não cair. E ele foi achado com a mão no manche. Você está louco. E o cara vem e fala isso? Não dá.¿