Título: Segredos e mentiras de um governador eleito
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Fonte: O Globo, 03/12/2006, O País, p. 16

Consagrado nas urnas do DF, José Roberto Arruda descreve a depressão que o levou até a pensar em suicídio

Ele violou um segredo da República. E foi descoberto. Mentiu todas as horas do dia, durante um ano. Encurralado, renunciou ao mandato no Senado para não ser cassado. Assumiu o erro e, com eloqüência, fez da pública expiação de culpa uma rotina. Acabou indultado pelo eleitorado e com uma segunda chance no jogo do poder: governar o Distrito Federal a partir de janeiro.

José Roberto Arruda, 52 anos, mantém-se penitente nas missas dominicais, mas na política é um ressuscitado que pôde assistir em casa ao próprio velório, numa tarde de maio de cinco anos atrás, depois da renúncia:

¿ Você vira defunto em um caixão imaginário. Olha em volta, vê quem chora, quem cuida das velas, quem aparece porque é amigo e quem vai lá só para ter certeza de que você morreu mesmo.

Horas antes, a Comissão de Ética recomendara sua cassação, junto com a do senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), por violação do painel eletrônico de votações do Senado. Eles quebraram o sigilo dos votos de todos os senadores na sessão secreta em que foi cassado o mandato do então senador Luiz Estevão (PMDB-DF) ¿ sócio do juiz Nicolau ¿Lalau¿ dos Santos em atos de corrupção no Tribunal do Trabalho de São Paulo.

¿ A lista (de votação) era para ver se não mudariam o resultado, como acho que já mudou em várias outras vezes ¿ conta Arruda. ¿ Havia dúvida sobre o sistema (do painel), até por vinculação de alguns funcionários com o Luiz Estevão. Dúvidas levantadas por senadores como José Eduardo Dutra e pela própria imprensa.

¿Não suportava tanta mentira¿

A fraude se tornou evidente um ano depois, em meio a um confronto entre os senadores Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) e Jader Barbalho (PMDB-PA). Líder do governo Fernando Henrique Cardoso no Senado, Arruda já passara um ano refutando versões sobre a bisbilhotagem. Não resistiu:

¿ Não suportava tanta mentira. Podia continuar mentindo? Podia sim. O que fiz? Não roubei, não matei, não desviei dinheiro público. Li um papel. Se dissesse ¿não li¿, estava tudo acabado. Outros estão aí felizes. Veja o caso do Antonio Carlos, do José Eduardo Dutra e da Heloísa Helena, por exemplo. Eles seguraram emoções, definiram seus papéis e não saíram dele. Eu não consegui, como disse ao renunciar: ¿Cometi um grande erro, talvez o maior de minha vida¿.

Saiu do Congresso, rezou numa igreja se trancou em casa. De político, lembra, só apareceu Arthur Virgílio (PSDB-AM). Em depressão, resolveu viajar:

¿ Fui para Belo Horizonte, onde mora meu irmão. Dormi todo o tempo. Segui para um hotel no interior de São Paulo. A imprensa descobriu. Recebi um telefonema do Paulo Hartung (governador do Espírito Santo). Pediram a ele que conversasse comigo, para ter certeza de que não falaria nada sobre outros envolvidos. Voltei porque comecei a me sentir mal. Vômito, dores...

O diagnóstico: linfoma na parede do estômago. E cirurgia imediata. Só depois da temporada no hospital, o engenheiro-eletricista percebeu a dimensão do curto-circuito:

¿ Estava em depressão profunda, e caindo. Minha análise cartesiana da vida, então, ficou muito clara: ¿Estou acabado¿.

Em casa, o telefone parou de tocar. Por décadas, a rotina familiar fora pontuada por festas.

¿ Sempre fui muito presente na minha base eleitoral. Era convidado para casamentos todo fim de semana... Um dia, olhei pra minha mulher (Marianne Vincentini, atriz) e disse: ¿Você notou que as pessoas pararam de casar em Brasília?¿

O tempo demorava a passar entre a correspondência (¿Escrevi e respondi umas mil e quinhentas cartas, todas à mão¿) e os livros. Prostrava-se.

¿ Tudo que você pode imaginar passou pela minha cabeça. Inclusive, suicídio.

"Vou reescrever a minha biografia¿

Um empregado, Vitor Hugo, encontrou Arruda vasculhando armários. Na casa só havia uma arma, esportiva, usada em torneios por um dos seus oito filhos (quatro são adotados). Hugo o convenceu sair para um passeio. Entrou no carro e tocou o telefone. Era a mulher.

¿ Aí decidi fazer terapia.

Três sessões por semana, complementadas por antidepressivos tarja preta. E só agora está deixando de tomar alguns medicamentos.

A recuperação incluiu a volta ao trabalho. Filho de um guarda-freios de ferrovia e de uma costureira, Arruda trocara Itajubá (MG) pelo Planalto aos 21 anos, para estagiar como engenheiro na Companhia de Eletricidade de Brasília. Chegou a diretor e, mais tarde, presidente. O retorno à estatal foi outra experiência (leia acima).

¿ Comecei a querer sair de casa, mas tinha vergonha. Um dia me deu vontade de ir ao Mané Garricha ver Gama e Santos. Torço pelos dois. Um menino que queria namorar minha filha falou: "Vou com você". Botei um boné, escondendo a careca.

No estádio, encontrou um buraco no alambrado em torno do campo e colou o corpo na grade. Só via os jogadores.

Trinta minutos do primeiro tempo, gol de Caio, dos Santos. Torcida emudecida. De repente, um grito da arquibancada:

¿ Ô Arruda, mexe no placar!

¿ Parecia que o estádio inteiro ria de mim. Não resisti, olhei e comecei a rir também. E descobri que rir da própria desgraça é a melhor terapia.

A vida ficou mais fácil. Se acostumou aos vizinhos:

¿ Tem a lista (de votação) aí, Arruda! ¿ gritavam da rua.

Antes de 2001 terminar, o presidente do PFL, Jorge Bornhausen, o chamou para um café.

¿ Estranhei, porque ninguém me convidava para nada. Mas fui e ele pediu que me filiasse ao PFL. Tentei argumentar. Não teve jeito. Assinei a ficha ali mesmo. Devo minha volta à política a ele.

Manteve segredo, durante meses. Não contou nem para a mulher ¿ temia a reação.

Candidato a deputado federal, em 2002, emergiu das urnas com votação recorde (27% dos votos válidos). No retorno ao Congresso, apresentou um projeto para acabar com o voto secreto na Câmara e no Senado. A decisão está prevista para os próximos dias. Quatro anos depois, deu a volta por cima: foi eleito governador do Distrito Federal em primeiro turno, com 53% dos votos válidos.

O eleitorado deu-lhe uma segunda chance, acredita:

¿ Agora no governo, vou reescrever a minha biografia. Pode publicar: começo com um corte de 40% nas despesas correntes líquidas; vou diminuir de 17 mil para uns 5 mil o número de cargos em comissão, e vamos trabalhar, eu, o vice e os secretários na mesma sala. Vai ter transparência total, em todos os atos de governo.

Arruda alimenta fobia pelo erro. E cultiva poucos amigos. Um deles é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

¿ Ele era o presidente. Ele viu?

¿ Viu o quê?

¿ A lista, Arruda.

Pausadamente, põe o garfo e a faca sobre a mesa. E, debruçado, junta as palmas das duas mãos encobrindo o rosto. Vê-se um esboço de sorriso.

¿ Mas ele viu ou não viu?

¿ Sobre isso...

¿ O quê?

¿ Sobre isso, é sobre isso... E apenas isso.